domingo, 14 de fevereiro de 2016

O machismo e a psicanálise: os riscos do "fiar-se nela"



"Uma coisa é o sujeito interrogar o inconsciente sobre seus amores, outra é a resposta lhe vir da "mulher" em questão. Não se trata mais de acreditar, mas de "fiar-se nela". Um risco, diz Lacan, o do amor. Aí está a diferença da obsessão, da fobia, etc. É que uma mulher fala sem que isso lhe seja pedido. Fiar-se nela é não apenas supor que ela seja a eleita do inconsciente, mas é também confundir sua fala com a verdade desse inconsciente, reconhecer nela a proferição de um 'tu és' interpretativo. É colocar seus ditos no lugar das reticências do sintoma, ali onde deveria vir a decifração. A realidade clínica desse fato é absolutamente certa. (...) Na análise, o 'minha mulher me diz que' pode ser comparado com isso, às vezes. Muitos fatos clínicos se esclarecem a partir daí, em especial o de uma mulher poder assumir, vez por outra, um papel quase persecutório, como uma voz que trombeteia nos ouvidos. 

'Ela me diz que ... não fico à altura dela, não sou corajoso, não me porto bem com as crianças, não sou o pai que deveria ser...'. Isso não condiz com a harmonia do cotidiano, é claro, porque as mulheres, ao contrário, gostam que se fale com elas e, com mais frequência, gostam de ser tomadas como exemplo. 

Por isso se constata que, na impossibilidade de reduzi-la ao silêncio, a solução, para o homem, é às vezes ouvir muitas delas, jogar com sua sinfonia, porque, quando ele realmente só tem uma em que se fiar, é, como se costuma dizer, uma loucura... (...) 'Minha mulher diz que' tem a estrutura da perseguição, e não é por brincadeira que Lacan afirma que o cômico do amor é o cômico da psicose, ou seja, que nos fiamos nela como numa voz. Mas com a diferença de que, se a paranoia identifica o gozo no lugar do Outro, o amor situa aí, primeiro, a mensagem da verdade. Daí este anseio bem masculino: 'tomara que ela cale a boca!', que também se diz 'seja bonitinha e fique calada'. Não devemos imaginar que sejam os critérios da estética que predominam nisso. 

O peso recai sobre o 'fique calada', como se lhe dissessem: 'não venha aí onde está o inconsciente'. Na análise, 'onde isso era, ali devo eu advir', mas quando, no amor, 'onde isso era, advém a fala dela', bem, vemo-nos numa estrutura discretamente geradora de paranoia, que constitui grande parte da tragicomédia do casal. É que, com a verdade, venha 
ela de onde vier, só existe uma única relação segura: a castração. 

Tive conhecimento do caso de um homem que, fazia 30 anos, anotava todos os dias em sua agenda o que sua mulher dizia, como se seu ser estivesse em jogo nisso! Por outro lado, em casos menos extremos, conhecemos os fenômenos da vigilância conjugal exercida por certos homens sobre aquela que não é forçosamente sua esposa, mas que, afinal, é a 'uma' em questão. Sabemos de mulheres condenadas a permanecer em casa, porque é preciso pelo menos circunscrever o perigo - trata-se de um mecanismo equivalente ao que se produz na fobia. Nesta, localiza-se a ameaça num significante e se fica tranquilo em todos os lugares em que ele não está. 

Pois bem, para alguns, quando a mulher está em casa, o homem pode se dedicar tranquilamente a suas ocupações lá fora. Mas, caso ela venha a se mexer e a proferir algo em público, a coisa pode se tornar mais perigosa. Há também o tipo de homem inquisitivo que pretende obter dela a última palavra! Por que não evocar ainda o fenômeno das mulheres que apanham? Ele com certeza é sobredeterminado, mas também aí evocarei um caso: a mulher não é espancada quando abre a boca para falar de coisas e de terceiros, mas, quando quer dizer alguma coisa sobre os dois, ela e ele, aí, sim, chovem pancadas".


Por Colette Soler, em "O que Lacan dizia das mulheres"

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