Rotineiramente influenciamos e somos influenciados por ideias e posturas muito poderosas. É um fenômeno comum, pois faz parte da condição humana e da sua
dimensão sócio-verbal. Conversamos, opinamos, argumentamos, discutimos,
agimos, expressamos e todo esse movimento gera consequências que
reverberam nos outros.... Muitas dessas consequências, infelizmente, passam despercebidas por nós.
Encontramos exemplos dramáticos na história de povos e nações
inteiras que foram arrebanhadas por indivíduos carismáticos que se
utilizavam dos mais diversos meios de divulgação para propagar
ideologias e atitudes que seriam, mais tarde, incorporados facilmente
pelas pessoas sem estas nem ao menos atentarem de onde elas vinham, em
que base sustentavam-se, quais os objetivos das pessoas que as
disseminavam e principalmente quais as consequências que poderiam
produzir.
Essas posturas podem, muitas vezes, não ter uma origem visível, mas
há sempre indivíduos que se apoderam e passam a defendê-las com unhas e
dentes justificando-nas de todas as formas para sustentá-las e cobri-las
de um caráter lógico, racional, ético, moral e ás vezes até mesmo
humanitário.
Nada muito diferente de uma pregação...
A Psicologia é uma área do conhecimento que está repleta de
pregadores... Os pregadores não são ruins por natureza, mas simplesmente
acredito que a Psicologia não deveria ser lugar para eles...
Poderia elencar aqui vários exemplos, porém irei deter-me num
fenômeno historicamente recente que foi potencializado pelo aumento da
diversidade teórica na Psicologia, pela pobreza intelectual dos
estudantes e profissionais da área e pelo contato mais frequente entre
estes proporcionado pelo aumento de eventos científicos e profissionais,
como também pela maior utilização dos meios de comunicação como a
internet e as redes virtuais de relacionamento (listas de discussão,
Orkut...).
Cabe ressaltar que este fenômeno também tem suas bases na necessidade
que muitos estudantes e profissionais da nossa área têm de tentarem
construir uma identidade ou unidade – muitas vezes de forma ingênua –
para a nossa profissão (uma tarefa dificílima, diga-se de passagem...).
A Psicologia é uma área do conhecimento muito ampla e que possui diversas orientações teóricas.
Cada orientação teórica possui um conjunto específico de pressupostos
filosóficos e epistemológicos, metodologias de pesquisa, técnicas,
protocolos de trabalho e até mesmo diretrizes políticas. Existem
diversas orientações teóricas na Psicologia. Na verdade existem diversos
conjuntos de orientações teóricas. Cognitivistas; Comportamentais;
Humanistas, Psicanalistas e Sócio-Históricas podem ser considerados os
principais conjuntos de orientações teóricas da Psicologia, apesar de
existirem outros de menor expressão. Há divergências e divisões dentro
desses conjuntos, mas há também semelhanças que por sua vez nos
autorizam a agruparmo-nas em conjuntos.
As orientações teóricas dentro da Psicologia são tão numerosas que se
formos levar em consideração todas as divisões dentro dos conjuntos já
citados podemos afirmar tranquilamente que há várias centenas de
orientações teóricas.
As diferenças entre os conjuntos de orientações teóricas são tão
grandes a ponto de vários teóricos considerarem a existência de várias
Psicologias e não somente de uma - afinal de contas cada orientação
teórica afirma tomar para si o estudo de um objeto com características
diferente dos demais objetos de estudo das outras.
O fenômeno ao qual me refiro desde o começo do texto e que está sendo
incorporado no discurso de muitos estudantes e profissionais pode ser
chamado de vitimização teórica.
Ela ocorre quando estudantes e profissionais de Psicologia passam a
cobrar mais “escuta”, “respeito”, “sensibilidade”, “cuidado”,
“aceitação”, “educação”, “assertividade” e menos “agressividade” e
“autoritarismo” quando estão discutindo sobre diversas questões –
principalmente questões científicas e aplicadas. Muitas vezes colegas
que se empenham mais vigorosamente nas discussões são acusados de serem
“autoritários”, “insensíveis” e tentarem “impor suas ideias”.
O grande problema existe porque quase sempre – ou sempre - a
orientação teórica de um estudante ou profissional de Psicologia
atravessa seu discurso - mesmo que isso não fique visível para ele mesmo
- e esse processo gera conflitos filosóficos, teóricos e políticos
inevitáveis (são os tais dos pressupostos epistemológicos, ontológicos e
as posturas políticas que cada orientação teórica reflete e que
inevitavelmente contaminam os discursos de cada um).
Esses conflitos teóricos, filosóficos e políticos, na maioria das
vezes, são insanáveis e isso não significa – ou não deveria significar -
“falta de respeito”, “falta de educação”, “autoritarismo” ou
“insensibilidade”...
Claro que é obrigação de todos respeitarem e serem educados com os
colegas de profissão, porém isso não significa em hipótese alguma que
uma pessoa tenha que deixar de argumentar utilizando dados ou conceitos
com receio de ofender o colega.
É essencial separar o “joio” do “trigo”: alguns são certamente mal
educados, outros simplesmente defendem vigorosamente seu posicionamento e
alguns exageram por não terem maturidade para discutir. Existem muitas
diferenças!
Desde quando podemos comparar seres humanos a teorias?Desde quando
podemos tratar posturas teóricas, filosóficas e políticas como se elas
fossem pessoas? Desde quando devemos ser humanitários, bonzinhos ou
respeitosos com posturas teóricas, filosóficas e políticas?
O fato de discordarmos da opinião de um terceiro não significa que
este tenha o direito de tratar o fato como uma desavença pessoal. Isso
só reflete uma imaturidade profissional.
O fenômeno da vitimização teórica é fruto de uma psicologização das discussões científicas:
o afeto de alguns fica acima dos interesses de uma discussão bem
embasada que pode proporcionar reflexões significativas ao grupo e
avanços no conhecimento.
Nesse processo de psicologização das discussões científicas são
eleitos “vítimas” e “criminosos”. Os primeiro tentam a todo custo
defender a ideia de que alguns dos presentes devem ou deveriam ser mais
“amenos” nas suas colocações ou argumentações. Como não conseguem,
recorrem a pretensos valores éticos, humanitários, científicos e
profissionais com o intuito de culpabilizar as pessoas que defendem
vigorosamente suas posições ou “atacam” as demais.
“Atacar” posições teóricas de outros não é sinônimo
de desrespeito ou autoritarismo. A história do conhecimento humano está
repleta vigorosas discussões que foram trampolim para grandes
descobertas e conceituações, mas a pobreza intelectual de vários
estudantes e profissionais de
Psicologia impedem-nos de levarem isso em
consideração... Simplesmente nunca tiveram contato com leituras
direcionadas ao estudo da História da Ciência ou pelo menos do
Conhecimento.
Ocorre também de muitas vezes recorrem à vitimização teórica porque
simplesmente têm medo de exporem as fraquezas
teórico-metodológico-práticas das orientações teóricas que "seguem". Não
têm a capacidade de progredir nas discussões e criam escudos protetores
como o da vitimização teórica.
Assim como o desrespeito e a agressividade, fenômenos como o da
vitimização teórica são grande barreiras ao diálogo e ao desenvolvimento
da Psicologia enquanto ciência e profissão!