sábado, 30 de abril de 2011

O papel da teoria na estética

A teoria tem tido um papel central na estética e ainda é a preocupação da filosofia da arte. A sua maior preocupação continua a ser, assumidamente, a determinação da natureza da arte, que possa ser formulada por meio de uma definição. Ela concebe a definição como a afirmação das propriedades necessárias e suficientes daquilo que está a ser definido, e esta afirmação diz algo de verdadeiro ou falso acerca da essência da arte, acerca daquilo que a caracteriza e a distingue de tudo o resto. Cada uma das grandes teorias da arte -- formalismo, voluntarismo, emocionalismo, intelectualismo, intuicionismo, organicismo -- converge na tentativa de enunciar as propriedades definidoras da arte. Cada uma delas reclama ser a verdadeira teoria por ter formulado correctamente a verdadeira definição da natureza da arte; e reivindica que as restantes teorias são falsas por terem deixado de fora alguma propriedade necessária ou suficiente. Muitos especialistas mantêm que o seu empreendimento não é um mero exercício intelectual, mas antes uma necessidade absoluta para qualquer compreensão da arte e da nossa correcta avaliação artística. Eles afirmam que, a não ser que saibamos o que é a arte, quais as suas propriedades necessárias e suficientes, não podemos reagir adequadamente à arte nem dizer por que razão uma obra é boa ou melhor do que outra. Assim, a teoria estética não só é importante em si mesma, mas também em relação aos fundamentos quer da apreciação quer da crítica de arte. Os filósofos, os críticos e mesmo os artistas que escreveram sobre arte, concordam que o que é primário em estética é a teoria acerca da sua natureza.

Será a teoria estética possível, no sentido de uma definição verdadeira ou de um conjunto de propriedades necessárias e suficientes da arte? Mais que não seja, a própria história da estética obriga-nos a fazer uma pausa. Além da existência de várias teorias, parece não estarmos hoje mais perto do nosso objectivo do que estávamos no tempo de Platão. Cada época, cada movimento artístico, cada filosofia da arte, tentou vezes sem conta estabelecer o seu ideal para depois ser sucedida por uma teoria nova ou revista, a qual se baseou, pelo menos em parte, na rejeição das teorias precedentes. Mesmo hoje, quase todos aqueles que se interessam por questões estéticas continuam profundamente ligados à esperança de que aparecerá uma teoria correcta da arte. Basta inspeccionar os numerosos livros novos sobre arte nos quais novas definições são apresentadas, ou, especialmente no nosso país, os manuais e antologias básicas para reconhecermos quão forte é a prioridade dada a uma teoria da arte.

Neste ensaio, pretendo advogar a rejeição deste problema. Pretendo mostrar que a teoria -- no sentido clássico requerido -- nunca surgirá na estética, e que faríamos muito melhor enquanto filósofos em substituir a questão «Qual é a natureza da arte?» por outras questões, a resposta às quais nos fornecerá todo o entendimento possível acerca das artes. Pretendo mostrar que a insuficiência das teorias não é primariamente ocasionada por nenhuma dificuldade legítima originada, por exemplo, pela vasta complexidade das artes, a qual poderia ser corrigida por uma exploração e investigação complementares. As suas insuficiências básicas residem antes numa má compreensão fundamental da arte. A teoria estética -- toda ela -- está errada em princípio ao pensar que uma teoria correcta é possível uma vez que adultera radicalmente a lógica do conceito de arte. É falsa a sua principal contenda de que a "arte" é susceptível de uma definição real ou de outro tipo de definição verdadeira. A sua tentativa de descobrir as propriedades necessárias e suficientes da arte é logicamente ilegítima pela simples razão de que nunca aparecerá um tal conjunto de propriedades nem, consequentemente, a sua fórmula. A arte, tal como a lógica do conceito mostra, não tem nenhum conjunto de propriedades necessárias e suficientes; logo, uma teoria acerca dela é logicamente impossível e não apenas factualmente impossível. A teoria estética tenta definir o que não pode ser definido no sentido requerido. Mas apesar de recomendar a rejeição da teoria estética, não irei defender, como muitos outros fizeram, que as suas confusões lógicas lhe tiraram o sentido ou o valor. Pelo contrário, desejo fazer uma nova avaliação do seu papel e das suas contribuições para mostrar, sobretudo, que é da maior importância para a nossa compreensão das artes.

Examinemos agora brevemente algumas das mais famosas teorias estéticas existentes, de modo a ver se elas de facto incorporam afirmações correctas e adequadas acerca da natureza da arte. Em cada uma destas teorias presume-se que ela fornece a verdadeira enumeração das propriedades definidoras da arte, ficando implícito que as teorias antecedentes forneceram más definições. Para começar, considere uma versão famosa da teoria formalista, a qual foi proposta por Bell e Fry. É verdade que eles falam sobretudo da pintura nos seus escritos, mas ambos afirmam que aquilo que eles encontram nessa forma de arte pode ser generalizado para aquilo que é "arte" nas outras formas de arte. A essência da pintura, defendem eles, é a relação entre os elementos plásticos. A sua propriedade definidora é a forma significante, isto é, certas combinações entre as linhas, as cores, as formas e os volumes -- tudo aquilo que se encontra na tela excepto os elementos representacionais -- que evocam uma reacção peculiar a tais combinações. A pintura é definível como organização plástica. A natureza da arte, aquilo que ela realmente é, afirma esta teoria, é uma combinação única de certos elementos (os elementos plásticos especificados) e das suas relações. Tudo aquilo que é arte é uma instância de forma significante; e tudo aquilo que não é arte não possui tal forma.

A isto responde o emocionalista dizendo que a verdadeira propriedade essencial da arte foi deixada de lado. Tolstoy, Ducasse, ou qualquer outro dos defensores desta teoria, acham que a propriedade definidora requerida não é a forma significante, mas antes a expressão das emoções num qualquer meio público sensual. Sem a projecção das emoções num qualquer pedaço de pedra ou num qualquer pedaço de madeira ou em certos sons, etc., não pode haver arte. A arte é de facto tal personificação. É isto que caracteriza a arte de forma única, e qualquer definição verdadeira, contida numa qualquer teoria adequada da arte, deve por isso referi-la.

Os intuicionistas rejeitam as emoções e a forma como propriedades definidoras. Por exemplo, na versão de Croce, a arte não é identificada com um objecto físico público mas com uma arte criativa específica, cognitiva e espiritual. A arte é um primeiro estádio de conhecimento em relação à qual certos seres humanos (os artistas) encaminham as suas imagens e as suas emoções para uma clarificação ou expressão lírica. Como tal, a arte é uma tomada de consciência, de carácter não conceptual, da individualidade única das coisas; e uma vez que se situa abaixo do nível de conceptualização, ou de acção, não possui conteúdo científico ou moral. Croce escolheu como essência definidora da arte este primeiro estágio de vida espiritual e avança esta identificação com a arte como traduzindo uma teoria filosófica verdadeira ou uma definição.

O organicista diz a tudo isto que a arte é, na verdade, uma classe de todos orgânicos, consistindo em elementos discrimináveis, embora inseparáveis, que mantêm relações causalmente eficazes e que estão presentes num certo meio sensível. Em A. C. Bradley, em certos fragmentos de versões de crítica literária, ou na minha própria adaptação generalizada disto em Philosophy of the Arts, o que se afirma é que tudo aquilo que é uma obra de arte é na sua natureza um complexo único de partes interrelacionadas -- na pintura, por exemplo, as linhas, as cores, os volumes, os temas, etc., interagem entre si numa superfície de pintura. Sem dúvida que, pelo menos numa certa altura, pensei que a teoria orgânica constituísse a verdadeira e real definição de arte.

O meu último exemplo é o mais interessante de todos, logicamente falando. Este é a teoria voluntarista de Parker. Nos seus escritos sobre arte, Parker coloca constantemente em causa as definições simplórias tradicionais de estética. «A suposição subjacente de toda a teoria da arte é a existência de uma natureza comum presente em todos as artes.»(1) «Todas as tão populares e breves definições de arte -- "forma significante", "expressão", "intuição", "prazer objectivado" -- são falaciosas, ou porque se verificam no caso da arte, mas também em muitas outras coisas que não são arte, e assim falham em diferenciar a arte das outras coisas; ou então porque negligenciam algum aspecto essencial da arte.»(2) Mas em vez de invectivar contra a própria tentativa de definir arte, Parker insiste que aquilo que é necessário é uma definição complexa em vez de uma simples. «A definição de arte deve assim ser formulada em termos de um complexo de características. A incapacidade de reconhecer isto tem sido a falha de todas as bem conhecidas definições.»(3) A sua própria versão do voluntarismo resulta na teoria de que a arte é essencialmente três coisas: a personificação de desejos imaginativamente satisfeitos, a linguagem, a qual caracteriza o meio público da arte, e a harmonia, a qual unifica a linguagem com as camadas das projecções imaginativas. Assim, para Parker, é uma definição verdadeira de arte dizer que ela «[...] fornece satisfação através da imaginação, da significação social e da harmonia. Estou a afirmar que nada mais à excepção das obras de arte possuem todas estas três marcas.»(4)

Todas as teorias apresentadas são inadequadas em diferentes aspectos. Todas elas pretendem fornecer uma descrição completa das características definidoras das obras de arte e contudo cada uma delas deixa de lado algo que as outras tomavam como central. Algumas dessas teorias são circulares -- por exemplo, a teoria da arte de Bell-Fry como forma significante, que em parte define essa característica em termos da nossa reacção à forma significante. Algumas, na sua procura das propriedades necessárias e suficientes, realçam pouquíssimas características, como é o caso (mais uma vez) da definição de arte de Bell-Fry, que deixa de lado a representação de temas na pintura; ou a teoria de Croce, que omite a inclusão da importantíssima característica do meio público, do carácter físico, por exemplo, da arquitectura. Outras teorias são demasiado gerais e incluem objectos que não são arte a par com as obras de arte. O organicismo é certamente um exemplo disso, uma vez que pode ser aplicada a qualquer unidade causal do mundo natural, assim como à arte.(5) Outras ainda, baseiam-se em princípios dúbios, por exemplo, a afirmação de Parker de que a arte personifica satisfações imaginativas, em vez de satisfações reais; ou a afirmação de Croce de que existe conhecimento não conceptual. Consequentemente, mesmo que a arte tenha um conjunto de propriedades necessárias e suficientes, nenhuma das teorias que referimos, nem nenhuma das teorias propostas até à data, enumerou esse conjunto de propriedades de modo satisfatório para todos.

Existe além disso um tipo diferente de dificuldade. Como definições reais este tipo de teorias deviam fornecer informações factuais sobre a arte. E se isto for verdade, podemos perguntar se serão elas teorias empíricas e abertas à verificação ou falsificação. Por exemplo, o que é que confirmaria ou infirmaria a teoria de que a arte é forma significante ou a personificação das emoções ou a síntese criativa de imagens? Parece nem sequer haver a mais pequena sugestão sobre que tipo de dados poderia testar estas teorias; e de facto, perguntamo-nos se elas não serão talvez definições honoríficas de "arte", isto é, propostas de redefinição do conceito de arte de modo a aplicá-lo em função de certas condições escolhidas , e não informações verdadeiras ou falsas acerca das propriedades essenciais da arte.

Mas todas estas críticas às teorias estéticas tradicionais -- a crítica de que são circulares, ou incompletas, ou não testáveis, ou pseudo-factuais, ou meras propostas para mudar o significado dos conceitos -- já tinham sido feitas. A minha intenção é ir além dessas críticas de modo a fazer uma crítica bem mais fundamental, nomeadamente, a de que a teoria estética é uma tentativa logicamente vã para definir aquilo que não pode ser definido, de determinação das propriedades necessárias e suficientes daquilo que não tem propriedades necessárias nem suficientes, de conceber o conceito de arte como fechado quando o seu próprio uso exige a sua abertura.

*

O problema com o qual temos de começar não é «O que é arte?», mas «Que tipo de conceito é "arte"?». De facto, o problema central da própria filosofia consiste em explicar a relação entre o uso de certos tipos de conceitos e as condições sob as eles podem ser correctamente aplicados. Se me é permitido parafrasear Wittgenstein, não devemos perguntar qual a natureza de um certo x filosófico, ou ainda, de acordo com os semanticistas, qual o significado de "x", algo que leva à interpretação desastrosa de "arte" como um nome para um conjunto específico de objectos; devemos antes perguntar «Qual o uso ou função de x?», «Qual a função que "x" desempenha na linguagem?». Penso ser esta a questão inicial, o início, senão o fim, de todos os problemas e soluções filosóficos. Deste modo, o nosso primeiro problema na estética é o de elucidação do emprego efectivo do conceito de arte, de modo a fornecer uma descrição lógica da função actual do conceito, incluindo uma descrição das condições debaixo das quais o usamos correctamente ou aos seu conceitos correlatos.

O meu modelo, neste tipo de descrição lógica ou filosófica, deriva de Wittgenstein, e foi também ele que, na sua refutação da teorização filosófica no sentido de construção de definições de entidades filosóficas, equipou a estética contemporânea com um ponto de partida para qualquer progresso futuro. Na sua nova obra, Investigações Filosóficas(6), Wittgenstein coloca como questão ilustrativa, a questão de saber o que é um jogo. A resposta filosófica teórica tradicional seria dada em termos de um conjunto exaustivo de propriedades comuns a todos os jogos. A isto responde Wittgenstein que devemos considerar aquilo a que chamamos "jogos": «Quero com isto dizer os jogos de tabuleiro, os jogos de cartas, os jogos de bola, os jogos de combate, etc. O que é comum a todos eles? Não respondas: "Tem de haver qualquer coisa em comum, senão não se chamariam jogos" -- mas olha, para ver se têm alguma coisa em comum -- porque quando olhares para eles não verás de facto o que todos têm em comum, mas verás parecenças, parentescos, e em grande quantidade.»

Os jogos de cartas são como os jogos de tabuleiro em alguns aspectos mas não noutros. Nem todos os jogos são divertidos, e nem sempre há ganhar e perder, ou competição entre os jogadores. Alguns jogos assemelham-se a outros em alguns aspectos -- isto é tudo. O que encontramos, não são propriedades necessárias e suficientes, mas apenas «uma rede complicada de parecenças que se cruzam e sobrepõem umas às outras» de tal modo que podemos dizer que os jogos formam uma família com parecenças de família e sem nenhum traço comum. Se perguntarmos o que é um jogo, para responder vamos buscar exemplos de jogos, descrevemo-los, e acrescentamos o seguinte, «a isto e a coisas parecidas chama-se um jogo». Isto é tudo o que precisamos de dizer e de facto tudo o que sabemos acerca de jogos. Saber o que é um jogo não é saber uma definição real ou uma teoria, mas ser capaz de reconhecer e explicar os jogos e ser capaz de decidir de entre exemplos novos e imaginários a quais lhes chamaríamos "jogos".

O problema da natureza da arte é como o da natureza dos jogos, pelo menos neste aspecto: se olharmos e vermos a que é que chamamos "arte", também não iremos encontrar nenhuma propriedade comum -- apenas cadeias de similaridades. Saber o que é arte não é apreender uma essência manifesta ou latente mas ser capaz de reconhecer, descrever e explicar aquelas coisas a que chamamos "arte" em virtude de certas similaridades.

A semelhança básica entre estes conceitos é a sua estrutura aberta. Ao elucidá-los, alguns casos (paradigmáticos) podem ser dados, acerca dos quais não pode existir a mínima dúvida ao serem descritos como "arte" ou "jogo", mas não é possível fornecer um conjunto exaustivo de exemplos. Posso fazer uma lista de alguns casos e algumas condições sob as quais aplico correctamente o conceito de arte, mas não posso fazer uma lista de todos esses casos e condições pela simples razão que estão sempre a surgir ou a antever-se condições novas ou imprevisíveis.

Um conceito é aberto se as suas condições de aplicação são reajustáveis e corrigíveis; isto é, se uma situação ou um caso pode ser imaginado ou obtido, o qual requeresse algum tipo de decisão da nossa parte de modo ou a alargar o uso do conceito para abranger o novo caso ou a fechar o conceito inventando um novo para abranger o novo caso e a sua nova propriedade. Se podemos estabelecer condições necessárias e suficientes para a aplicação de um conceito, o conceito é fechado. Mas isto é algo que apenas pode acontecer na lógica e na matemática onde os conceitos são construídos e completamente definidos. Isto não pode acontecer com conceitos empiricamente descritivos e normativos, a não ser que os fechemos arbitrariamente estipulando o alcance dos seus usos.

Posso ilustrar melhor este carácter aberto da "arte" com exemplos retirados dos seus sub-conceitos. Considere questões como as seguintes: «É U.S.A. de Dos Passos um romance?»; «É Rumo ao Farol de V. Woolf um romance?»; «É Finnegan’s Wake de Joyce um romance?» Do ponto de vista tradicional, estes são problemas factuais que devemos responder com um sim ou não de acordo com a presença ou a ausência de propriedades definidoras. Mas certamente que esta não é a forma como respondemos a estas questões. Assim que tal questão se coloca, como aconteceu tantas vezes no desenvolvimento de romances desde Richardson a Joyce (por exemplo, «É The Scholl for Wives de Gide um romance ou um diário?»), o que está em causa, não é um exame factual acerca de propriedades necessárias e suficientes mas uma decisão sobre se a obra examinada é ou não similar a outras obras, em certos aspectos, a que já chamávamos "romances", e se, consequentemente, se justifica ou não o alargamento do conceito de modo a abranger este caso novo. A nova obra é uma narrativa, uma obra ficcional, contém um esboço de personagens e diálogos, mas, por exemplo, o enredo não tem uma sequência temporal regular ou é interpolada por relatos verídicos de jornais. Esta nova obra é em alguns aspectos similar aos reconhecidos romances A, B, C, ..., mas diferente noutros aspectos. Mas também nem a obra B nem a C era similar à A em todos os aspectos quando se decidiu alargar o conceito que se aplicava a A a B e a C. Uma vez que a obra N+1 (a nova obra) é como a obra A, B, C, ... e N em certos aspectos -- tem certos traços similares -- o conceito é alargado e uma nova fase do romance criada. Assim, a questão,«É N+1 um romance?» não é uma questão factual, mas antes um problema de decisão, cujo o veredicto consiste em saber se devemos ou não alargar o nosso conjunto de condições de aplicação do conceito.

O que se verifica no caso do romance verifica-se também, penso eu, em todos o sub-conceitos de arte: "tragédia", "comédia", "pintura", "ópera", etc., e verifica-se no caso do próprio conceito de "arte". Nenhuma questão do tipo «É X um romance, uma pintura, uma ópera, uma obra de arte, etc.?» permite uma resposta definitiva no sentido de um sim ou um não baseado em factos. A resposta à questão «É esta colagem uma pintura ou não?» não assenta num conjunto de propriedades necessárias e suficientes da pintura, mas em saber se decidimos ou não -- como de facto o fizemos -- alargar o termo "pintura" para abranger este caso.

O próprio conceito de "arte" é um conceito aberto. Novas condições (novos casos) surgiram e continuarão certamente a surgir; aparecerão novas formas de arte, novos movimentos, que irão exigir uma decisão por parte dos interessados, normalmente críticos de arte profissionais, sobre se o conceito deve ou não ser alargado. Os estetas podem estabelecer condições de similaridade, mas nunca condições necessárias e suficientes para a correcta aplicação do conceito. Com o conceito "arte", as suas condições de aplicação nunca podem ser exaustivamente enumeradas, uma vez que novos casos podem sempre ser considerados ou criados pelos artistas, ou mesmo pela natureza, o que exigirá uma decisão por parte de alguém em alargar ou fechar o velho conceito ou em inventar um novo. (por exemplo, «Isto não é uma escultura, é um mobile.»)

Assim, aquilo que estou a defender é que o próprio carácter expansivo e empreendedor da arte, as suas sempre presentes mudanças e novas criações, torna logicamente impossível garantir um qualquer conjunto de propriedades definidoras. É claro que podemos escolher fechar o conceito. Mas fazer isso com "arte" ou "tragédia" ou "retrato", etc., é ridículo, uma vez que exclui as próprias condições de criatividade na arte.

É claro que existem casos legítimos e proveitosos de conceitos fechados na arte. Mas esses são aqueles cujas condições de limitação foram traçadas com propósitos específicos. Considere-se, por exemplo, a diferença entre "tragédia" e "tragédia grega". O primeiro é um conceito aberto e deve assim permanecer para permitir a possibilidade de novas condições, por exemplo, uma peça em que o herói não é nobre ou não foi morto com nobreza ou em que nem sequer existe um herói mas em que estão presentes outros elementos parecidos àqueles já existentes nas peças a que chamamos "tragédia". O segundo conceito é fechado. A peça a que pode ser aplicado, as condições debaixo das quais pode ser correctamente usado, estão todas presentes, assim que a fronteira foi traçada, com o qualificativo de "grega". Neste caso, o crítico de arte pode fornecer uma teoria ou uma definição na qual apresenta uma lista das propriedades comuns, pelo menos as propriedades das tragédias gregas já existentes. A definição de Aristóteles, que é uma teoria falsa acerca das peças de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, uma vez que não dá conta de algumas delas(7), sendo todas elas correctamente designadas por "tragédias", pode ser interpretada como uma boa definição (se bem que incorrecta) do conceito fechado "tragédia grega"; apesar de também poder ser interpretada, como infelizmente tem sido, como pretendendo fornecer uma definição de "tragédia", caso em que passa a sofrer do erro lógico de tentar definir aquilo que não pode ser definido -- de tentar comprimir um conceito aberto numa fórmula honorífica para um conceito fechado.

O trabalho mais importante do crítico de arte, se ele não se deixar confundir, é o de clarificar completamente o modo como concebe os seus conceitos; caso contrário, ele poderá passar do problema de tentar definir "tragédia", etc., para a tentativa de fechar o conceito com base em certas condições ou características que ele prefere, as quais resume numa recomendação linguística que erradamente julga tratar-se de uma verdadeira definição de um conceito aberto. Por conseguinte, ao perguntarem «O que é uma tragédia?» muitos dos críticos e estetas escolhem uma classe de amostras a partir da qual podem fazer uma boa descrição das propriedades que estas têm em comum, interpretando depois esta descrição das propriedades de um conjunto específico de amostras escolhidas como se fosse uma verdadeira definição ou teoria para toda a classe aberta de tragédia. Penso ser este o mecanismo lógico das chamadas teorias dos sub-conceitos de arte: "tragédia", "comédia", "romance", etc. Com efeito, todo este processo, subtilmente enganador, equivale a uma transformação de um critério correcto para reconhecer os membros de uma certa classe fechada legítima de obras de arte, num critério recomendado de avaliação de um qualquer putativo membro da classe.

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A primeira função da estética não é a de procurar uma teoria mas a de elucidar o conceito "arte". Especificamente, a sua primeira função é descrever sob que condições empregamos correctamente o conceito de arte. Definições, reconstruções e padrões de análise estão fora de questão uma vez que destorcem e nada acrescentam à nossa compreensão da arte. Assim sendo, qual é a lógica da expressão «X é uma obra de arte»?

O conceito "arte" é usado quer de modo descritivo (como "cadeira") quer de modo valorativo (como "bom"); isto é, tanto dizemos «Isto é uma obra de arte» com a intenção de descrever algo como com a intenção de avaliar algo. Nenhum destes usos é surpreendente.

Assim sendo, qual é então a lógica de «X é uma obra de arte» quando a elocução é descritiva? Sob que condições seria esta elocução correcta? Não existem condições necessárias e suficientes mas existem as cadeias de condições de semelhança, isto é, existem feixes de propriedades que nos permitem descrever algo como uma obra de arte, e apesar de não ser necessária a presença de nenhuma dessas propriedades, a maioria delas está presente. A isto chamarei "critério de reconhecimento" de obras de arte. Todas estas propriedades têm servido como critério de definição das teorias de arte tradicionais; por isso já estamos familiarizados com elas. Deste modo, na maioria das vezes que descrevemos algo como obra de arte, fazemo-lo sob a condição de estarmos perante uma espécie de artefacto, feito por seres humanos, com engenho e imaginação, que inclui no seu meio público sensual -- pode ser feita de pedra, madeira, sons, palavras, etc. -- certos elementos e relações distinguíveis. Certos especialistas incluiriam condições como a satisfação de desejos, a objectificação ou a expressão das emoções, um certo acto de empatia, e assim por diante; mas estas últimas condições parecem ser bastante adventícias, podendo estar presentes num espectador mas não noutros quando algo é descrito como uma obra de arte. A expressão «X é uma obra de arte e não contém qualquer emoção, expressão, acto de empatia, satisfação, etc.» faz todo o sentido e pode até acontecer na maioria dos casos. Expressões como « X é uma obra de arte e ... não foi feita por nenhuma pessoa» ou «... existe apenas na mente e não em algo público e observável» ou «... foi criada acidentalmente quando ele entornou a tinta na tela», apesar de serem todas a negação de uma das condições normais para que algo seja classificado como obra de arte, são razoáveis e podem-se verificar em certas condições. Nenhum dos critérios de reconhecimento é um critério definidor, nenhum deles é necessário ou suficiente, uma vez que podemos afirmar que algo é uma obra de arte negando ao mesmo tempo qualquer uma dessas condições, podemos mesmo negar aquela que tradicionalmente se tomou como básica, nomeadamente, a condição de ser um artefacto. Considere-se, por exemplo, a expressão «Este pedaço de madeira à deriva é uma bela escultura». Dizer que algo é uma obra de arte, obriga a que nos comprometemos com a presença de alguma dessas condições. Dificilmente descreveríamos X como uma obra de arte se X não fosse um artefacto, nem fosse constituído por uma colecção de elementos presentes num meio sensível, nem fosse um produto do engenho humano, e assim por diante. Se nenhuma das condições estivesse presente, se não estivesse nenhum critério presente para reconhecer algo como uma obra de arte, não iríamos descrever esse algo como uma obra de arte. Mas mesmo assim nenhum desses critérios, nem mesmo uma colecção deles, é necessário ou suficiente.

A elucidação do uso descritivo de "arte" levanta poucas dificuldades. Mas a elucidação do seu uso valorativo já não é tão pacífica. Para muita gente, especialmente para os especialistas, a expressão «Isto é uma obra de arte» faz mais do que descrever; também elogia. Assim sendo, as suas condições de uso incluem algumas propriedades ou características preferidas da arte. Considere um exemplo típico deste uso valorativo: a ideia de acordo com a qual dizer que algo é uma obra de arte é dizer que esse algo consiste numa harmonização bem sucedida de elementos. Muitas das definições honoríficas de arte e dos seus subconceitos são desta forma. Mas o que aqui está em causa é que o termo "arte" é constituído como um termo valorativo que é ou identificado com o seu critério ou justificado com base nele. O termo "arte" é definido com base na sua propriedade valorativa, por exemplo, harmonização bem sucedida. Deste ponto de vista, dizer «X é uma obra de arte» é 1) dizer algo que significa «X é uma harmonização bem sucedida» (por exemplo, «a arte é forma significante»); ou 2) dizer algo digno de louvor com base na sua harmonização bem sucedida. Os especialistas nunca esclarecem se é 1 ou 2 que pretendem dizer. Muitos deles, preocupados com este uso valorativo, formulam 2, isto é, aquela característica da arte que faz do objecto um objecto de arte no sentido honorífico, e depois passam a afirmar 1, isto é, a definição de "arte" com base nas características que descrevem um objecto como uma obra de arte. Isto é, claramente, confundir as condições sob as quais dizemos algo em sentido valorativo com o significado daquilo que dizemos. A expressão «Isto é uma obra de arte», tomada valorativamente, não pode significar «Isto é uma harmonização bem sucedida de elementos» -- excepto se assim o estipularmos. No máximo, a expressão é usada por causa da própria propriedade da arte, que é tomada como um (o) critério de "arte", quando "arte" é usado valorativamente. A expressão «Isto é uma obra de arte», usada valorativamente, serve para elogiar e não para afirmar a razão pela qual é proferida.

O uso valorativo de "arte", apesar de ser distinto das suas condições de uso, relaciona-se de modo íntimo com essas condições -- pois em todos os casos de «Isto é uma obra de arte» (usada para elogiar) acontece que se converte o critério de avaliação (por exemplo, harmonização bem sucedida) para o emprego do conceito de arte num critério de reconhecimento. É por este motivo que, no seu uso valorativo, a expressão «Isto é uma obra de arte» implica a expressão «Isto tem P », onde P é uma certa propriedade da arte. Deste modo, se escolhermos usar "arte" valorativamente, como muitas pessoas fazem, a expressão «Isto é uma obra de arte e é (esteticamente) boa» não faz sentido, uma vez que usamos "arte" de tal modo que acabamos por recusar chamar a algo uma obra de arte a não ser que incorpore o nosso critério de excelência.

Não existe nada de errado com o uso valorativo; de facto, existem boas razões para usar "arte" valorativamente. Mas não se pode continuar a achar que teorias do uso valorativo de "arte" sejam verdadeiras definições que estabelecem as propriedades necessárias e suficientes da arte. Em vez disso, elas são, pura e simplesmente, definição honoríficas, nas quais o conceito "arte" foi redefinido por meio de um critério escolhido.

Mas o que torna estas teorias -- estas definições honoríficas -- tão valiosas não são as suas recomendações linguísticas disfarçadas, mas o debate acerca das razões para mudar o critério do conceito de arte que é usado na definição. Em cada uma das grandes teorias da arte, quer tenham sido correctamente entendidas como definições honoríficas ou incorrectamente aceites como definições reais, o que é da maior importância são as razões oferecidas no argumento da respectiva teoria, isto é, as razões dadas para a escolha ou preferência do critério de excelência ou valorização. É este eterno debate acerca destes critérios de valoração que faz da história da teoria estética o estudo importante que é. O valor de cada uma das teorias reside nas suas tentativas de determinar e justificar um certo critério que ou foi negligenciado ou rejeitado pelas teorias anteriores. Veja-se novamente a teoria de Bell-Fry. É claro que a expressão «A arte é forma significante» não pode ser aceite como uma verdadeira definição de arte; e certamente que funciona de facto na estética deles como uma redefinição da arte em termos das condições escolhidas da forma significante. Mas o que lhe confere importância estética é o que está para lá da fórmula: numa época em que os elementos literários e representacionais eram soberanos na pintura, assiste-se a um regresso aos elementos plásticos, uma vez que eles são os elementos naturais da pintura. Portanto, o papel da teoria não é o de definir algo, mas o de usar a forma de definição, de modo quase epigramático, para identificar a recomendação crucial de voltarmos novamente a nossa atenção para os elementos plásticos da pintura.

Assim que, como filósofos, compreendamos esta distinção entre a fórmula e aquilo que está para lá dela, compete-nos lidar generosamente com as teorias de arte tradicionais; porque em todas elas se encontra um debate em torno de um argumento para enfatizar ou para nos centrarmos sobre uma característica particular da arte que haveria sido negligenciada ou deturpada. Como vimos, se tomarmos as teorias estéticas literalmente, todas elas falham, mas se as reinterpretarmos em termos das suas funções, como recomendações sérias e defendidas por meio de argumentos para nos concentrarmos num certo critério de excelência na arte, veremos que a teoria estética está longe de ser inútil. De facto, torna-se central na estética, para a nossa compreensão da arte, pois ensina-nos o que devemos procurar na arte e como devemos encarar o que encontramos na arte. O que é central e deve ser articulado em todas as teorias são os seus debates acerca das razões para a excelência na arte -- debates acerca da profundidade emocional, de verdades profundas, da beleza natural, da exactidão, da vivacidade de tratamento e assim por diante, como critério de avaliação -- os quais convergem na direcção do problema perene de saber o que torna uma obra de arte boa. Compreender o papel da teoria estética não é concebê-la como uma definição, logicamente condenada ao fracasso, mas lê-la como sumários de recomendações feitas com seriedade atender de determinadas maneiras a certas características da arte.


Morris Weitz
The Journal of Aesthetics and Art Criticism, XV (1956), 27-35.
Tradução de Célia Teixeira
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Vícios de Covil...

O meu olhar entende o vosso olhar fatal,
se bem que o meu sentir, espavorido, fuja
desse perverso olhar, desse clarão que suja as almas
e envenena a flor do ideal...


Que vós não tendes na alma, apunhalou-a o vício
nas cenas do deboche, às horas dos anseios...
Da muito que o amor fugiu dos vossos seios,
e o vosso amor da agora é um amor de ofício!


Por toda a parte encontro a vossa graça espúria
no mesmo tom banal de gestos imprudentes.
Abrindo a suja boca em risos indecentes,
para a fechar em beijos de luxúria!


O vosso ar ilude, o vosso busto chama,
escandalosamente, o vosso todo atrai...
Porém a sedução a breve trecho cai,
porque lhe falta a graça ingénua de quem ama...


Ou seja numa alcova ou seja num casebre,
o vício bestial, ó pálidas estátuas,
depois de vos gozar numas carícias fátuas,
concedo-vos somente as podridões e a febre.


Desenha-vos na face, encerra-vos na testa,
as rugas que colheu nas noites mal passadas.
E vai por essa vida a rir às gargalhadas,
do lívido desdém da rara gente honesta...


Não pára um só momento, abrange o mundo inteiro.


Amores De Ofício
Acceptus Noctifer

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Sonhos De Cadáver...

Órbitas sem olhos, lâmpadas sem luz,
maxilas cor d'âmbar, frias como o gelo,
faces descarnadas, crânios sem cabelo,
formas onde a carne se desfez em pus
despiu-nos a terra o tórax e os diversos membros.


Das bocas sem lábios sai-nos uma trova,
que é como um punhal esfarrapando a pele.
A desoras, quando treme o arvoredo,
e o silêncio esmaga as fortes ventanias,
no baile macabro damos as mãos frias
e vamos dançar cançoes ao luar.


E quem sabe lá, profunda noite escura,
as voltas que demos quando ainda não
tínhamos descido à negra vala impura.


Ai quem sabe lá! Que a vida é enigma
aonde entramos rindo sem pensar na seca vida...
Vale mais morrer, que a morte é a saída...
dessa pena injusta, desse infame estigma.


Desse imundo charco...
A dor e a angústia, o desengano e a febre,
o ouro de um palácio e a fome de um casebre...
Que para ver males é que nós nascemos
pelas podridões dos bacanais devassos,
onde o vício bebe por lascivas taças,
o veneno um que nos estraga o sangue.


Amores De Ofício
Acceptus Noctifer

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Jesus é comico, abra sua boca...



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O benefício da dúvida...

Difícil é lidar com donos da verdade. Não há dúvida de que todos nós nos apoiamos em algumas certezas e temos opinião formada sobre determinados assuntos; é inevitável e necessário. Se somos, como creio que somos, seres culturais, vivemos num mundo que construímos a partir de nossas experiências e conhecimentos. Há aqueles que não chegam a formular claramente para si o que conhecem e sabem, mas há outros que, pelo contrário, têm opiniões formadas sobre tudo ou quase tudo. Até aí nada de mais; o problema é quando o cara se convence de que suas opiniões são as únicas verdadeiras e, portanto, incontestáveis. Se ele se defronta com outro imbuído da mesma certeza, arma-se um barraco.

De qualquer maneira, se se trata de um indivíduo qualquer que se julga dono da verdade, a coisa não vai além de algumas discussões acaloradas, que podem até chegar a ofensas pessoais. O problema se agrava quando o dono da verdade tem lábia, carisma e se considera salvador da pátria. Dependendo das circunstâncias, ele pode empolgar milhões de pessoas e se tornar, vamos dizer, um “fuhrer”.

As pessoas necessitam de verdades e, se surge alguém dizendo as verdades que elas querem ouvir, adotam-no como líder ou profeta e passam a pensar e agir conforme o que ele diga. Hitler foi um exemplo quase inacreditável de um líder carismático que levou uma nação inteira ao estado de hipnose e seus asseclas à prática de crimes estarrecedores.

A loucura torna-se lógica quando a verdade torna-se indiscutível. Foi o que ocorreu também durante a Inquisição: para salvar a alma do desgraçado, os sacerdotes exigiam que ele admitisse estar possuído pelo diabo; se não admitia, era torturado para confessar e, se confessava, era queimado na fogueira, pois só assim sua alma seria salva. Tudo muito lógico. E os inquisidores, donos da verdade, não duvidavam um só momento de que agiam conforme a vontade de Deus e faziam o bem ao torturar e matar.

Foi também em nome do bem — desta vez não do bem espiritual, mas do bem social — que os fanáticos seguidores de Pol Pot levaram à morte milhões de seus irmãos. Os comunistas do Khmer Vermelho haviam aprendido marxismo em Paris não sei com que professor que lhes ensinara o caminho para salvar o país: transferir a maior parte da população urbana para o campo. Detentores de tal verdade, ocuparam militarmente as cidades e obrigaram os moradores de determinados bairros a deixarem imediatamente suas casas e rumarem para o interior do país. Quem não obedeceu foi executado e os que obedeceram, ao chegarem ao campo, não tinham casa onde morar nem o que comer e, assim, morreram de inanição. Enquanto isso, Pol Pot e seus seguidores vibravam cheios de certeza revolucionária.

É inconcebível o que os homens podem fazer levados por uma convicção e, das convicções humanas, como se sabe, a mais poderosa é a fé em Deus, fale ele pela boca de Cristo, de Buda ou de Muhammad. Porque vivemos num mundo inventado por nós, vejo Deus como a mais extraordinária de nossas invenções. Sei, porém, que, para os que creem na sua existência, ele foi quem criou a tudo e a todos, estando fora de discussão tanto a sua existência quanto a sua infinita bondade e sapiência.

A convicção na existência de Deus foi a base sobre a qual se construiu a comunidade humana desde seus primórdios, a inspiração dos sentimentos e valores sem os quais a civilização teria sido inviável. Em todas as religiões, Deus significa amor, justiça, fraternidade, igualdade e salvação. Não obstante, pode o amor a Deus, a fé na sua palavra, como já se viu, nos empurrar para a intolerância e para o ódio.

Não é fácil crer fervorosamente numa religião e, ao mesmo tempo, ser tolerante com as demais. As circunstâncias históricas e sociais podem possibilitar o convívio entre pessoas de crenças diferentes, mas, numa situação como do Oriente Médio hoje, é difícil manter esse equilíbrio. Ali, para grande parte da população, o conflito político e militar ganhou o aspecto de uma guerra religiosa e, assim, para eles, o seu inimigo é também inimigo de seu Deus e a sua luta contra ele, sagrada. Não é justo dizer que todos pensam assim, mas essa visão inabalável pode ser facilmente manipulada com objetivos políticos.

Isso ajuda a entender por que algumas caricaturas — publicadas inicialmente num jornal dinamarquês e republicadas em outros jornais europeus — provocaram a fúria de milhares de muçulmanos que chegaram a pedir a cabeça do caricaturista. Se da parte dos manifestantes houve uma reação exagerada — que não aceita desculpas e toma a irreflexão de alguns jornalistas como a hostilidade de povos e governos europeus contra o islã—, da parte dos jornais e do caricaturista houve certa imprudência, tomada como insulto à crença de milhões de pessoas.

Mas não cansamos de nos espantar com a reação, às vezes sem limites, a que as pessoas são levadas por suas convicções. E isso me faz achar que um pouco de dúvida não faz mal a ninguém. Aos messias e seus seguidores, prefiro os homens tolerantes, para quem as verdades são provisórias, fruto mais do consenso que de certezas inquestionáveis.


Autor: Ferreira Gullar
Fonte: Folha de S. Paulo (edição impressa)



Dúvide, questione, brigue, mude, seja você, desligue a TV!
Melhor ser um idiota para a massa ignorante, do que infeliz para você mesmo...

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Sedentarismo Fútil (Desligue a TV)


Em frente a TV
sem saber o que vai acontecer
em frente a TV
esperando algo acontecer
em frente a TV
sem fazer acontecer
em frente a TV
nada vai acontecer
em frente a TV
nada vai acontecer
dores de cabeça, hipnose?
artérias entupidas, burrice?
aperte a tecla SAP
... e saberás então

Autor: Floyd
Banda: Dessarranjo Harmônico




O capitalismo domina o mundo, sua principal arma, a televisão a grande ruptura intelectual mundial, tiros hipnotizantes de mensagens subliminares, os dominadores dão a arma e a grande massa de ignorantes capta tudo e leva isso como sua verdade moral. Televisão... Para mim, suicídio coletivo!


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Por que é quase certo que deus não existe...

A América, fundada em meio ao secularismo como farol do iluminismo do século 18, está se tornando vítima da política religiosa — uma circunstância que teria chocado seus fundadores. A tendência política hoje ascendente atribui mais valor a células embrionárias que a pessoas adultas. Ela se preocupa obsessivamente com o casamento entre homossexuais, em detrimento de questões genuinamente importantes que de fato fazem uma diferença para o mundo. Conquista apoio eleitoral crucial de um eleitorado religioso cujo domínio da realidade é tão tênue que seus integrantes esperam ser “carregados em êxtase” ao paraíso, deixando suas roupas tão vazias quanto suas mentes.

Meus colegas cientistas têm razões adicionais para declarar estado de emergência. Os ataques ignorantes e absolutistas às pesquisas com células-tronco representam apenas a ponta de um iceberg. O que temos aqui não é nada menos que um ataque global à racionalidade e aos valores iluministas que inspiraram a fundação desta primeira e maior das repúblicas seculares. O ensino de ciências — logo, todo o futuro da ciência neste país — se encontra sob ameaça. Temporariamente derrotada num tribunal da Pensilvânia, a “inanidade estarrecedora” (na frase imortal do juiz John Jones) do design inteligente continuamente ressurge em incêndios florestais locais [alusão ao juiz que proibiu em 2005 uma escola de ensinar o design inteligente porque isto seria inconstitucional].

Apagar esses incêndios é uma responsabilidade que consome muito tempo, mas é importante, e os cientistas estão finalmente sendo arrancados de sua complacência. Durante anos eles trabalharam tranquilamente com sua ciência, lamentavelmente subestimando os criacionistas que, sendo tampouco competentes ou interessados na ciência, se ocuparam com o trabalho político sério de subverter os conselhos locais de ensino. Os cientistas, e os intelectuais de modo geral, agora estão despertando para a ameaça representada pelo Talibã americano.

Os cientistas se dividem entre duas linhas de pensamento quanto à melhor tática com a qual fazer frente à ameaça. A escola de “conciliação” de Neville Chamberlain focaliza a batalha pela evolução. Consequentemente, seus integrantes identificam o fundamentalismo como sendo o inimigo e se esforçam ao máximo para conciliar com a religião “moderada” ou “sensata” (uma tarefa que não é difícil, na medida em que bispos e teólogos rejeitam os fundamentalistas tanto quanto o fazem os cientistas).

Já os cientistas da escola Winston Churchill veem a luta pela evolução como apenas uma batalha em uma guerra mais ampla: uma guerra que se aproxima entre o sobrenaturalismo e a racionalidade. Para eles, bispos e teólogos se enquadram no campo sobrenatural, lado a lado com os criacionistas, e não se deve procurar conciliar com eles.

Um artigo recente de Cornelia Dean no “New York Times” cita o astrônomo Owen Gingerich como tendo dito que, ao advogar simultaneamente a evolução e o ateísmo, “o dr. Dawkins sozinho provavelmente atrai mais convertidos para o design inteligente do que qualquer dos mais destacados teóricos do design inteligente”. Não é a primeira, nem a segunda, nem mesmo a terceira vez que se apresenta esse argumento insuperavelmente destituído de bom senso (e mais de uma réplica a ele já citou, com muita conveniência, Uncle Remus: “Por favor, Irmão Raposa, não me atire naquela horrível moita espinhosa”).

Isso soa tremendo, até que você para para refletir sobre a ideia por um instante. Então você se dá conta de que a presença de uma divindade criativa no universo é claramente uma hipótese científica. De fato, seria difícil imaginar uma hipótese mais momentosa em toda a ciência. Um universo com um deus seria um universo de tipo totalmente diferente de um universo sem deus, e a diferença seria científica. Deus poderia acabar com a dúvida a seu favor a qualquer momento, encenando uma demonstração espetacular de suas forças, capaz de satisfazer os padrões exigentes da ciência. Mesmo a infame Fundação Templeton reconheceu que Deus é uma hipótese científica. Apesar de esforços bem financiados, ainda não apareceu nenhuma evidência que comprove a existência de Deus.

Para enxergar a hipocrisia insincera das pessoas religiosas que se dizem adeptas do NOMA, imaginemos que arqueólogos forenses, devido a algum conjunto improvável de circunstâncias, descobrissem evidências em DNA que demonstrassem que Jesus nasceu de mãe virgem e não teve pai. Se os entusiastas do NOMA fossem sinceros, eles deveriam desconsiderar imediatamente o DNA encontrado pelos arqueólogos: “É irrelevante. As evidências científicas não têm valor algum para questões teológicas. É o magistério errado.”

Alguém imagina seriamente que eles diriam alguma coisa remotamente semelhante a isso? Pode apostar o que você quiser que não apenas os fundamentalistas, mas também todos os bispos e todos os professores de teologia do país alardeariam as evidências arqueológicas até os céus.

Ou Jesus teve pai, ou não teve. A questão é científica, e evidências científicas seriam usadas para resolvê-la, se as houvesse. O mesmo se aplica a qualquer milagre — e a criação proposital e intencional do universo só poderia ter sido a mãe e o pai de todos os milagres. Ou ela aconteceu, ou não aconteceu. É um fato, de uma maneira ou de outra, e, em nosso estado de incerteza, podemos atribuir a ele uma probabilidade — uma estimativa que pode se modificar à medida que forem chegando mais informações. A melhor estimativa que a humanidade pode fazer quanto à probabilidade da criação divina se reduziu drasticamente em 1859, quando foi publicado “A Origem das Espécies”, e vem caindo constantemente nas décadas subsequentes, à medida que a evolução foi se consolidando, de teoria plausível no século 19 para fato estabelecido, hoje.

A tática Chamberlain de aconchegar-se com a religião “sensata”, de modo a apresentar uma frente unida contra os criacionistas (os proponentes do design inteligente), é ótima se sua preocupação central é a batalha pela evolução. Essa é uma preocupação central válida, e eu saúdo aqueles que a defendem, como é o caso de Eugenie Scott em “Evolution versus Creationism” (Evolução versus criacionismo). Mas, se você se debruça sobre a questão científica estupenda de se o universo foi ou não criado por uma inteligência sobrenatural, as linhas divisórias seguem um traçado totalmente distinto. Sobre essa questão mais ampla, os fundamentalistas se unem à religião “moderada” em um dos campos, e eu me vejo no outro.

É claro que tudo isso pressupõe que o Deus do qual estamos falando seja uma inteligência pessoal, como Jeová, Alá, Baal, Wotan, Zeus ou Krishna. Se, com “Deus”, você se refere ao amor, à natureza, à bondade, ao universo, às leis da física, ao espírito da humanidade ou à constante de Planck, nenhuma das anteriores se aplica. Uma estudante americana perguntou a seu professor se ele tinha uma opinião formada a meu respeito. “É claro”, respondeu o professor. “Ele diz que a ciência positiva é incompatível com a religião, mas fala em tom de êxtase sobre a natureza e o universo. Para mim, isso é — religião!”. Bem, se é isso que você opta por indicar quando fala em religião, ótimo, isso faz de mim um homem religioso. Mas se seu Deus é um ser que projeta universos, escuta orações, faz milagres, lê seus pensamentos, se preocupa com seu bem estar e faz você se reerguer depois de morto, é pouco provável que você se satisfaça. Como disse o respeitado físico americano Steven Weinberg: “Se você quiser dizer que ‘Deus é energia’, então poderá encontrar Deus num pedaço de carvão.” Mas não espere que congregações inteiras lotem sua igreja.

Quando Einstein disse: “Deus teve uma opção ao criar o Universo?”, ele quis dizer: “Poderia o universo ter começado de mais de uma maneira?”. “Deus não joga dados” foi a maneira poética encontrada por Einstein para colocar em dúvida a teoria da indeterminância de Heisenberg. Einstein se irritou, num caso que se tornou célebre, quando os teístas interpretaram erroneamente o que ele dissera, considerando que ele falava de um Deus pessoal. Mas o que ele esperava? A sede de interpretá-lo erroneamente deveria ter sido evidente para ele. Os físicos supostamente religiosos geralmente revelam sê-lo apenas no sentido einsteiniano: são ateus dotados de disposição poética. Eu também o sou. Mas, em vista do anseio muito amplo por esse grande equívoco de interpretação, confundir deliberadamente o panteísmo einsteiniano com religião sobrenatural é um ato de alta traição intelectual.

Aceitando, então, que a hipótese da existência de Deus é uma hipótese científica válida cuja verdade ou falsidade nos é oculta pela ausência de evidências, qual deve ser nossa melhor estimativa da probabilidade de que Deus existe, dadas as evidências hoje disponíveis? Bastante baixa, na minha opinião, e eis o porquê.

Para começar, vários dos argumentos tradicionais em favor da existência de Deus, de são Tomás de Aquino em diante, são fáceis de se demolir. Vários deles, como o argumento da primeira causa, funcionam criando um regresso infinito, para cuja conclusão se convoca Deus. Mas nunca nos é dito por que Deus é magicamente capaz de pôr fim a regressos, sem dar qualquer explicação dele mesmo. É claro que precisamos, sim, de algum tipo de explicação da origem das coisas. Físicos e cosmólogos estão trabalhando duro sobre esse problema. Mas, seja qual for a resposta — uma flutuação quântica aleatória, ou uma singularidade de Hawking/Penrose, ou seja que nome acabarmos por lhe dar —, ela será simples. Coisas complexas e estatisticamente improváveis, por definição, não acontecem, simplesmente — elas exigem uma explicação. Elas são impotentes para encerrar regressos, de uma maneira que coisas simples não são. A primeira causa não pode ter sido uma inteligência — o que dirá uma inteligência que atende a orações e tem prazer em ser adorada. Coisas inteligentes, criativas, complexas e estatisticamente improváveis chegam ao universo com atraso, como produtos da evolução ou de algum outro processo de escalação gradativa a partir de origens simples. Elas chegam ao universo tarde; logo, não podem ser responsáveis por tê-lo projetado.

Isso é um argumento? Poderíamos igualmente bem dizer que as pessoas variam com relação a seu grau de mau cheiro, mas que só podemos fazer a avaliação com referência a um máximo perfeito de mau cheiro concebível. Logo, deve existir um malcheiroso preeminentemente ímpar, ao qual chamaremos Deus. Ou então substitua qualquer dimensão de comparação que você quiser e dela derive uma conclusão igualmente insensata. Isso é teologia.

O único dos argumentos tradicionais em favor da existência de Deus que é largamente usado hoje é o argumento teleológico, às vezes chamado de argumento a partir do desígnio, embora — como seu nome impõe a pergunta sobre sua validez —, seria melhor que fosse chamado de argumento em favor do desígnio. É o conhecido argumento do “relojoeiro”, que com certeza é um dos maus argumentos mais superficialmente plausível já descoberto — e é redescoberto por praticamente todo o mundo, até que se lhes é ensinada sua falácia lógica e a alternativa brilhante proposta por Darwin.

No mundo familiar dos artefatos humanos, as coisas complicadas que aparentam ter sido projetadas foram projetadas. Para os observadores ingênuos, parece ser decorrência lógica disso que coisas igualmente complicadas no mundo natural que aparentam ter sido projetadas — coisas como olhos e corações — também o tenham sido. Não é apenas um argumento por analogia. Existe aqui, também, uma aparência de raciocínio estatístico — falaz, mas que carrega uma ilusão de plausibilidade. Se você misturasse aleatoriamente os fragmentos de um olho, uma perna ou um coração um milhão de vezes, teria sorte em obter até mesmo uma combinação que fosse capaz de enxergar, andar ou bombear. Isso demonstra que objetos como esses não poderiam ter sido montados por acaso. E, é claro, nenhum cientista de bom senso jamais disse que o foram. Lamentavelmente, a educação científica da maioria dos estudantes britânicos e americanos omite qualquer menção a Darwin, e, portanto, a única alternativa ao acaso que a maioria das pessoas consegue imaginar é o desígnio.

Mesmo antes da época de Darwin, a ilogicidade era evidente: como poderia ter sido boa ideia, para explicar a existência de coisas improváveis, postular um criador que teria sido ainda mais improvável? O argumento inteiro é logicamente inválido, como percebeu David Hume antes de Darwin ter nascido. O que Hume não conhecia era a alternativamente supremamente elegante tanto ao acaso quanto ao desígnio que Darwin nos apresentaria. A seleção natural é tão espantosamente poderosa e conveniente que não apenas explica a vida toda, como eleva nosso grau de consciência e reforça nossa confiança na capacidade futura da ciência de explicar todas as outras coisas.

A seleção natural não é simplesmente uma alternativa ao acaso. É a única alternativa final jamais sugerida. O desígnio é apenas no curto prazo uma explicação funcional para a complexidade organizada. Não é uma explicação final, porque os próprios responsáveis pelo desígnio precisam ser explicados. Se, como certa vez especularam como brincadeira Francis Crick e Leslie Orgel, a vida neste planeta tivesse sido semeada intencionalmente por uma carga de bactérias enviada no cone de um foguete, ainda precisaríamos de uma explicação para os extraterrestres inteligentes que teriam enviado o foguete. Em última análise, eles devem ter evoluído gradativamente a partir de origens mais simples. Apenas a evolução, ou alguma espécie de “guindaste” gradualista (para empregar o termo apto de Daniel Dennett), é capaz de encerrar o regresso. A seleção natural é um processo antiacaso que vai gradativamente aumentando a complexidade, um passo minúsculo a cada vez. O produto final deste processo de avanço irreversível é um olho, um coração ou um cérebro — um objeto cuja complexidade improvável é totalmente incompreensível, enquanto você não enxergar a rampa gradativa que conduz a ele.

Quer esteja certa ou não minha conjetura de que a evolução constitui a única explicação da vida no universo, não há dúvida de que ela é a explicação da vida neste planeta. A evolução é um fato, e é um dos fatos mais incontestes conhecidos pela ciência. Mas ela precisou começar de alguma maneira. A seleção natural não pode operar seus milagres enquanto não existirem determinadas condições mínimas, das quais a mais importante é um sistema preciso de criação de réplicas — o DNA ou algo que funcione como o DNA.

A origem da vida neste planeta — o que significa a origem da primeira molécula a se autorreplicar — é difícil de estudar porque (provavelmente) aconteceu apenas uma vez, 4 bilhões de anos atrás e sob condições muito diferentes daquelas com as quais estamos familiarizados. É possível que nunca cheguemos a saber como aconteceu. Diferentemente dos eventos evolutivos comuns que a seguiram, ela deve ter sido um evento genuinamente muito improvável, no sentido de imprevisível: improvável demais, talvez, para que químicos possam reproduzi-lo em laboratório ou sequer imaginar uma teoria plausível que explique o que aconteceu. Essa conclusão bizarramente paradoxal — que um relato químico da origem da vida, para ser plausível, precisa ser implausível — seria lógica se fosse fato que a vida é extremamente rara no universo. E, de fato, nunca encontramos qualquer indício de vida extraterrestre, nem mesmo por rádio — circunstância essa que motivou a indagação de Enrico Fermi: “Onde está todo o mundo?”

Suponhamos que a origem da vida no planeta tenha ocorrido graças a um golpe de sorte tremendamente improvável, tão improvável que acontece apenas em um em 1 bilhão de planetas. A Fundação Nacional de Ciências reagiria com gargalhadas a qualquer químico que propusesse uma pesquisa que tivesse apenas uma chance em cem de dar certo — o que dirá uma em 1 bilhão. No entanto, em vista do fato de que existem pelo menos 1 bilhão de bilhões de planetas no universo, mesmo uma probabilidade tão absurdamente pequena quanto essa resultará em vida em 1 bilhão de planetas. E — é aqui que entra o célebre princípio antrópico —, a Terra precisa ser um deles, porque nós estamos aqui.

Se você partisse numa nave espacial para encontrar o único planeta na galáxia que tem vida, as chances de que não o encontrasse seriam tão grandes que, na prática, a tarefa seria indistinguível do impossível. Mas, se ainda estivesse vivo (como você manifestamente estaria, se estivesse prestes a entrar numa nave espacial), não precisaria se dar ao trabalho de sair à procura do único planeta, porque, por definição, já se encontraria nele. O princípio antrópico realmente é bastante elegante. Por falar nisso, não penso realmente que a origem da vida tenha sido tão improvável assim. Acho que a galáxia é pontilhada por muitas ilhas de vida, mesmo que essas ilhas se encontrem demasiado distantes uma das outras para que qualquer uma delas tenha a esperança de encontrar-se com qualquer outra. O que quero demonstrar é que, dado o número de planetas do universo, a origem da vida poderia, teoricamente, ser um golpe de sorte tão grande quanto o de um jogador de golfe vendado acertar um buraco com uma tacada só. A beleza do princípio antrópico consiste no fato de que, mesmo diante de chances tão estarrecedoramente grandes contra ela, ela ainda nos fornece uma explicação perfeitamente satisfatória da presença da vida em nosso planeta.

O princípio antrópico geralmente é aplicado não a planetas, mas a universos. Alguns físicos sugeriram que as leis e constantes da física são demasiado boas —como se o universo fosse pré-disposto a favorecer nossa eventual evolução. É como se houvesse, digamos, meia dúzia de mostradores representando as principais constantes da física. Cada um deles poderia ser sintonizado com qualquer um de uma grande gama de valores. Quase todas as manipulações dos mostradores renderiam um universo no qual a vida seria impossível. Alguns universos desapareceriam no primeiro pico-segundo (picosecond). Outros não conteriam elementos mais pesados que o hidrogênio e o hélio. Em outros, ainda, a matéria jamais se condensaria para formar estrelas (e são necessárias estrelas para formar os elementos químicos, logo, a vida). Podemos estimar a probabilidade muito pequena de que todos os seis mostradores por acaso estarem corretamente sintonizados e, então, concluir que algum manipulador divino dos mostradores deve ter entrado em ação. Mas, como já vimos, essa explicação não é inteligente porque deixa sem resposta a maior pergunta de todas. O próprio manipulador divino dos mostradores teria que ter sido no mínimo tão improvável quanto sua manipulação dos mostradores.

Mais uma vez o princípio antrópico oferece sua solução devastadoramente satisfatória. Os físicos já têm razões para suspeitar que nosso universo — tudo o que podemos enxergar — é apenas um universo entre possivelmente bilhões. Alguns teóricos postulam um multiverso de espuma no qual o universo que conhecemos seria apenas uma bolha. Cada bolha teria suas leis e constantes próprias. Nossas leis conhecidas da física seriam regulamentos internos regionais. De todos os universos existentes na espuma, apenas uma minoria possuiria as condições necessárias para gerar vida. E, com a visão retrospectiva antrópica, é óbvio que nós precisamos estar sentados em um membro dessa minoria, porque, afinal, estamos aqui, não estamos? Como disseram os físicos, não é por acaso que enxergamos estrelas em nosso céu, pois um universo sem estrelas seria destituído dos elementos químicos necessários para a vida. É possível que existam universos cujos céus não têm estrelas, mas eles não teriam habitantes que pudessem dar-se conta dessa ausência. Do mesmo modo, não é por acaso que vemos uma rica diversidade de espécies vivas: pois um processo evolutivo que é capaz de render uma espécie capaz de enxergar coisas e refletir sobre elas não pode deixar de gerar muitas outras espécies ao mesmo tempo. Essa espécie reflexiva precisa ser cercada por um ecossistema, assim como precisa ser cercada por estrelas.

O princípio antrópico nos dá direito a postular uma dose maciça de sorte na explicação da existência de vida em nosso planeta. Mas existem limites. Temos direito a um golpe de sorte para a origem da evolução, e talvez a alguns poucos outros eventos únicos, como a origem da célula eucariótica e a origem da consciência. Mas com isso termina nosso direito à sorte em grande escala. Enfaticamente, não podemos evocar grandes golpes de sorte para explicar a ilusão do desígnio que brilha em cada uma do bilhão de espécies de criaturas vivas que já viveram na Terra. A evolução da vida é um processo geral e contínuo que, essencialmente, produz o mesmo resultado em todas as espécies, por mais diferentes sejam os detalhes.

Contrariamente ao que às vezes se alega, a evolução é uma ciência previsora. Se você escolher qualquer espécie ainda não estudada e submetê-la a escrutínio detalhada, qualquer evolucionista irá prever com confiança que se observará que cada indivíduo da espécie fará que tudo que estiver a seu alcance, à maneira particular dessa espécie — vegetal, herbívora, carnívora, nectívora ou seja o que for — para sobreviver e propagar o DNA que reside nela. Não estaremos por aqui por tempo suficiente para testar essa previsão, mas podemos afirmar, com grande confiança, que, se um cometa atingir a Terra e extinguir os mamíferos, uma nova fauna surgirá para tomar seu lugar, assim como os mamíferos tomaram o lugar dos dinossauros há 65 milhões de anos. E a gama de papéis exercidos pelo novo elenco do drama da vida será semelhante em seus traços gerais, mesmo que não em seus detalhes, aos papéis exercidos pelos mamíferos, e pelos dinossauros antes deles, e pelos répteis com semelhanças com mamíferos que existiam antes dos dinossauros. Previsivelmente, as mesmas regras vêm sendo seguidas por milhões de espécies em todo o globo e há centenas de milhões de anos. Esse tipo de observação geral requer um princípio explicativo inteiramente diferente do princípio antrópico, que explica eventos singulares, como a origem da vida ou a origem do universo, pela sorte. Esse princípio inteiramente diferente é a seleção natural.

Explicamos nossa existência por uma combinação do princípio antrópico e do princípio da seleção natural de Darwin. Essa combinação fornece uma explicação completa e profundamente satisfatória de tudo o que vemos e conhecemos. Não apenas a hipótese de deus é desnecessária. Ela é espetacularmente pouco parcimoniosa. Não apenas não precisamos de um Deus que explique o universo e a vida. Deus se destaca no universo como o mais gritante dos supérfluos que destoam de tudo o que o cerca. É claro que não podemos comprovar que Deus não existe, assim como não podemos comprovar que Thor, fadas, duendes ou o Monstro do Espaguete Voador não existem. Mas, assim como fazemos com essas outras fantasias cuja existência não conseguimos desmentir, podemos afirmar que Deus é muito, muito improvável.


Autor: Richard Dawkins
Tradução: Clara Allain
Fonte: Folha Online
Original: Why there almost certainly is no god