quarta-feira, 19 de março de 2014

Psicanálise e a Religião: algumas contribuições

 
 
Resumo: Este trabalho pretende apresentar algumas contribuições psicanalíticas sobre a religião enquanto instituição e enquanto experiência do sujeito. A psicanálise, concebendo o sujeito enquanto faltoso, nos convoca a pensar na religião enquanto aquilo que oferece o complemento desta falta constitutiva do sujeito. Concebendo o desejo como impossível de ser satisfeito completa e permanentemente, a religião, seria um convite à ilusão da consistência, da completude. A psicanálise vem, então, para denunciar a retirada da responsabilidade e autonomia do sujeito religioso e sua alienação na figura do Outro, enquanto portador de um suposto saber do qual o próprio sujeito desconhece.
 
Palavras-chave: Psicanálise, Religião, Sigmund Freud
 
 

1. Introdução

Na era da ciência, na qual se diz que Deus é um delírio (Dawkins, 2007) e na qual há uma incessante busca (delirante?) pela partícula Deus, poderíamos ficar surpresos quanto ao retorno de questões relativas à religiosidade, à fé, e à espiritualidade. Podemos afirmar que, atualmente, há uma decadência da instituição religiosa, mas uma crescente busca pela religiosidade individual e utilitarista (Mattos, 2009).
 
O ser humano sempre procurou entender-se e entender o mundo a seu redor recorrendo, para isso, a diversos deuses. Isto porque, como sugere a máxima “conhece-te a ti mesmo”, o homem não pode conhecer-se sem se referir a uma alteridade, ao outro, ao além (Mattos, 2009).  Para a psicanálise, o “sujeito suposto saber” indica esta forma de crença no Outro plenamente consistente, o qual supomos possuir todo o saber que falta ao sujeito, saber este capaz de nos dar o porquê e o “como” de nosso sofrimento, tornando legível nosso destino.
 
Desde a modernidade inaugurada por Descartes, com seu cogito ergo sum, podemos afirmar que houve um deslocamento na origem de suas respostas: da fé em deus, passou-se à fé na ciência.
 
Questões antes endereçadas ao sistema religioso passam a ser buscas no método científico. Ser ateu, então, torna-se o reflexo do espetáculo da razão, a afirmação do primado da racionalidade sobre a espiritualidade, a renúncia à ilusão de alcançar uma verdade para-além do mundo terreno. Importante observar como esta concepção de ateu está muito mais próxima da figura de onipotência e onisciência do que gostaríamos de imaginar. Deus não morreu, como sugeriu Nietzsche, mas se manteve vivo assumindo a forma de certas idolatrias referentes à ação e ao cálculo, recuperados no cientificismo moderno (Mattos, 2009).
 
A psicanálise, sempre atenta ao dinamismo cultural, se manteve no seio do debate em relação às mudanças operadas pela modernidade e aos seus novos modos de representação do sujeito. Assim, novas perspectivas acerca da religiosidade são oferecidas pela psicanálise e pela teologia, além das diversas contribuições freudianas, como veremos agora.

 

2. Freud e a Religião

Freud era declaradamente ateu, tendo rotulado a religião de grande neurose universal, dito que ela é “a realização dos desejos mais antigos, fortes e prementes da Humanidade, e que a sua força é a força desses desejos” (1926/1976, p. 43) e que o diabo nada mais é do que a personificação da vida pulsional inconsciente recalcada (Lopes, 2008). Contudo, o ateísmo de Freud não se reduz à sua opinião, mas parte de constatações da própria clínica, contribuindo para a teoria psicanalítica.
Entretanto, Maciel & Rocha (2008) ressaltam que o fato de Freud não ter atendido em sua clínica particular casos em que houve boa relação entre o sujeito e a religião não deve concluir que esta harmonia é impossível e que casos assim não aconteçam na clínica contemporânea. Mesmo naquela época havia casos em que a religião poderia ser considerada sadia do ponto de vista clínico, e para isso podemos nos referir ao amigo de Freud, pastor Pfister, que lhe mostrou como isso era possível em convívio com a própria teoria psicanalítica.
 
Apesar de notarmos o ateísmo por parte de Freud, ele mesmo teria dito que a psicanálise não é religiosa nem anti-religiosa, mas um instrumento à disposição da libertação dos que sofrem, sejam estes crentes ou não. Inclusive, assumindo a posição de analista, teria dito ao seu amigo e pastor Pfister que a psicanálise não dependia de seu ateísmo. Talvez mais do que afirmar que o psicanalista é ateu metodologicamente (Mattos, 2009), prefiro me referir ao analista como um agnóstico, buscando recusar qualquer discurso a favor ou contra a fé, e sustentando uma experiência baseada na simples escuta de um sujeito. Como diria Beinaert (1987), esta recusa a qualquer ato de juízo a respeito da fé não tem nada de mais e talvez de menos amedrontador que o silêncio de Deus nas verdadeiras experiências espirituais.
 
Levando em consideração o objetivo da psicanálise – libertação dos que sofrem -, Maciel & Rocha (2008) afirmam que esta libertação pode sim se fazer a partir de uma experiência religiosa que esteja devidamente integrada ao dinamismo psíquico do sujeito. Entretanto, como veremos mais adiante com Lopes (2008), essa libertação poderia ser comparada ao efeito terapêutico que resultava da análise pelo método hipnótico, datada da época em que Freud ainda não havia assumido a utilização do método de associação livre.

 

3. Psicanálise e Religião                                         

Tanto Freud como Lacan partem da ideia de que ao ser humano falta algo – algo este que podemos dar vários nomes, como a falta, a coisa, a castração, a ferida narcísica, etc. - e de que seu desejo para ser completo é sempre impossível de ser satisfeito plena e permanentemente. Assim, o sujeito da psicanálise é finito, limitado, e faltoso. Se, por um lado, a psicanálise é o que retifica a absoluta inconsistência e incompletude do ser humano, a religião é o que me alude à completude, é o que me ilude. 
 
Foi em 1910 que Freud, com a obra Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, estabeleceu pela primeira vez uma ligação entre o complexo paternal e a crença em Deus. Para Freud, “a religião é a neurose obsessiva universal” (Freud, 1907, p. 109). Isso significa que a religião busca obsessivamente o pai idealizado da infância, todo poderoso, onipotente, garantia de completa segurança.
 
A religião, portanto, é como uma das mais fortes sugestões de que posso ser salvo, de que posso ser completo, de que posso ser consistente comigo mesmo. A ideia de Deus nos remete a um Outro que me protege da minha necessidade de amparo, da minha situação de impotência. É a figura da onipotência que trata de recobrir a angústia. Fica claro, neste caso, como o discurso psicanalítico encontra-se no pólo oposto ao do discurso do monoteísmo.
 
Inegavelmente podemos constatar de casos clínicos como muitas atitudes religiosas podem ser consideradas verdadeiros sintomas neuróticos, bastando, para isso, tomar exemplos das próprias obras freudianas. Entretanto, como bem salientou Maciel & Rocha (2008), se por um lado Freud nos mostra como se dá a articulação entre a religião e a neurose, por outro ele não deixa de notar como a religião pode mesmo nos proteger do desencadear de um processo neurótico: “o aumento extraordinário das neuroses, desde que decaiu o poder das religiões, pode dar-lhes uma medida disso” (1910/1976, p. 131).     Em Psicologia de Grupo e a Análise do Ego (1921/1976), Freud retoma esta temática e afirma: “mesmo os que não lamentam o desaparecimento das ilusões religiosas do mundo civilizado de hoje admitem que, enquanto estiveram em vigor, ofereceram aos que a elas se achavam presos a mais poderosa proteção contra o perigo da neurose” (p. 178).
 
A ilusão religiosa, de acordo com Freud, teria seu fundamento no assassinato mítico do pai da horda primeva, escrito em Totem e Tabu (1913). Com isso, ele concebia o sentimento religioso como uma “nostalgia do Pai morto”, como um pseudo-retorno do Pai. De acordo com Rey-Flaud (2002), trata-se de um apelo “contra a castração e a morte em um mundo onde a castração e a morte já estão consumadas” (p. 21). É interessante notar como a representação de Deus, representação que sugere preencher o vazio constitutivo de minha própria existência, pode ser deslocada para diversas outras representações que indiquem um caminho para a salvação, para a proteção, para o amparo, para a união. Fuks (2010) exemplifica isso com a imagem de Führer que, representando um eu ideal, caminhava para tamponar o vazio constitutivo da própria cultura, constitutivo da diferença, da singularidade de cada indivíduo. Assim se dá a ilusão ideológica e religiosa: utiliza-se da unificação dos sujeitos em torno de uma verdade em comum, ou seja, do sentimento de desamparo universal, incitando a intolerância à diferença, ao outro como portador daquilo que não reconheço em mim mesmo. Tal identificação aos ideais religiosos eram testemunhados pelos analistas na clínica, onde “se colocavam pregados a uma cruz imaginária onde sofriam sem morrer” (Mattos, 2009, p. 8).
 
Aqui entramos num ponto importante, em que é preciso distinguir religião e espiritualidade. Podemos usar a definição de Koenig (2001), que conceitua a religião como um sistema organizado de crenças, práticas, rituais e símbolos projetados a fim de auxiliar a proximidade do indivíduo com o transcendente. Já a espiritualidade seria uma busca pessoal por respostas sobre o significado da vida e, talvez o mais importante, abarcaria o próprio relacionamento com o transcendente. Aqui se trata, portanto, de uma especificidade da religião, que transmite uma verdade na qual o sujeito deve se encaixar para ser auxiliado na busca pelo transcendente, enquanto que o conceito de espiritualidade traz intrinsecamente algo do próprio sujeito, algo da busca por sua própria verdade, abarcando, inclusive, a própria experiência religiosa do sujeito.
 
Com essa distinção de conceitos, poderíamos pensar se a instituição religiosa não distorceria o caminho do próprio sujeito em sua busca eterna pelo transcendental, uma vez que o insere num sistema já organizado, sistema este que, ao mesmo tempo em que permite a libertação, prende-o à marra de crenças previamente definidas. Com isso, poderíamos concordar com Leonardo Boff (2000), quando diz que enquanto as instituições religiosas separam, a espiritualidade reúne. Isto porque a experiência mística que a última proporciona transmite a possibilidade de uma experiência da verdade de cada um.
 
De acordo com Lopes (2008), podemos comparar a religião como uma busca pela salvação, com a cura pela hipnose, que Freud recorria antes de construir o método de associação livre. Uma das razões de Freud abandonar a hipnose era o fato de esse método ser um tanto invasivo, no sentido de que eram feitas sugestões ao paciente, encaixando-o em uma verdade da qual ele desconhece. O sujeito era “curado”, mas não era responsabilizado por sua cura. Esta, ao contrário, era atribuída ao hipnotizador, que possuía um suposto saber sobre o paciente e absorvia toda a autonomia e responsabilidade do paciente por sua cura, fazendo este se alienar na verdade do hipnotizador. Como bem disse Lopes (2008), encaixar alguém numa verdade que lhe é exterior constitui uma tremenda violência ao sujeito. Podemos até mesmo pensar no conceito de abuso sexual na criança visto pelos olhos de Ferenczi, como comparação, mas deixemos isto para outro momento.
 
Se introduzir uma verdade no universo simbólico de alguém, persuadindo-o de que esta verdade também pode ser sua, se constitui numa violência, estamos nos referindo a uma forma de submissão, a uma retirada da autonomia do sujeito, retirada de sua própria verdade. A religião, oferecendo Deus como a restituição do Pai da infância do sujeito, oferece uma relação transferencial destituída de qualquer ética; a mesma ausência de ética que afastou Freud do método hipnótico.
 
Foi com Artigos sobre técnica (1914) que Freud resguardou uma ética para a relação transferencial, tendo de ser utilizada com muito cuidado, uma vez que poderia se transformar em uma arma muito perigosa; e lucrativa, diga-se de passagem. Assim, na psicanálise a transferência é quase sempre utilizada para ser denunciada, para impedir que ela mesma constitua um obstáculo ao método da livre associação. Em algumas igrejas, poderíamos dizer, a relação transferencial com a imagem de Deus serve de instrumento para a garantia de dinheiro, como bem podemos observar na Igreja Universal do Reino de Deus, onde o único sacrifício possível é a doação de dinheiro. Assim, a religião sugere um encontro com Deus, um encontro com o todo-poderoso, onipotente, enquanto que, de outro lado, ao final de uma análise bem sucedida há, pelo sujeito, a aceitação não de um Pai idealizado, mas a de um pai que foi o pai possível, de um pai humano, demasiadamente humano.
 
Se Freud defende a ideia de que a crença em Deus é uma busca pela figura de um pai, figura esta que me garante segurança e proteção de doenças e da morte, por outro lado a queda na realidade nos livra de um Pai tirânico, distante, rigoroso e onipotente, que deseja sacrifícios a todo custo.

 

4. Considerações finais

Podemos observar com o que foi dito até agora que, se por um lado podemos nos apegar à religião como meio de defesa do conflito neurótico, por outro podemos encontrar na religião um campo propício para o desenvolvimento de uma neurose ou psicose (Maciel & Rocha, 2008). Com base nesta ambiguidade, podemos deixar de atribuir à experiência religiosa a causa de uma neurose, deslocando-a para o sujeito, cuja organização psíquica fragilizada encontra na religião a resposta a seu desamparo fundamental. Tratar a religião como causa de uma neurose, portanto, retira a responsabilidade do sujeito por seu próprio sintoma, assim como buscar na religião um encontro com Deus sugere deixar de assumir minha própria indeterminação, enquanto sujeito, para me alienar na figura do Outro. Poderíamos supor, então, que a religião não é a causa da neurose, mas a encarnação desta.
 
 
Autor:  Oliver Schmidt Silva

domingo, 16 de março de 2014

Parábola do Homem Louco

 
 
 Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós os matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’?
 
Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós os matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará esse sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!” Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles cometeram! – Conta-se também no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas , e em cada uma entoou o seu Réquiem aeternaum deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?”.
 
(Nietzsche - Gaia Ciência, Aforismo 125)

 
"Cada um de nós é livre para acreditar no que quiser e a minha resposta mais simples é: Deus não existe. Ninguém criou o universo e ninguém comanda a nossa fé. Isso me leva a uma conclusão profunda, provavelmente não existe o paraíso nem vida após a morte. Temos só essa vida para apreciar a grandeza do Universo e, por isso, sou extremamente grato."

(Stephen Hawking)
 

quinta-feira, 6 de março de 2014

Escutem o louco

 
De repente, o taxista aumentou o som da pequena TV acoplada no console do carro. No banco de trás, eu parei de ler e afinei os ouvidos. Era meio-dia da sexta-feira de Carnaval (28/2). O homem que, dias antes, havia empurrado uma passageira nos trilhos do metrô de São Paulo tinha sido preso.
 
A mulher teve o braço amputado. O agressor sofre de esquizofrenia, destacou o apresentador de TV. “Louco”, decodificou de imediato o taxista. Doença triste, disse o apresentador na TV. Ao ser preso, continuou o apresentador, o agressor afirmou que a empurrou porque sentiu raiva. Essa parte o taxista não escutou. Algo lá fora o havia perturbado. Colou a mão na buzina, abriu a janela do carro e xingou o motorista ao lado, que tentava mudar de pista. Perdigotos saltavam da sua boca enquanto ele empunhava o dedo médio com uma mão que deveria estar no volante. Fechou a janela, para não perder a temperatura do ar-condicionado, e voltou a falar comigo. “A polícia tem de tirar os loucos da rua”. A quem ele se refere, pensei eu, confusa, olhando para fora, para dentro. Era ao louco do metrô.
 
Há algo de trágico nos loucos. E não apenas o que é definido como loucura nessa época histórica. Há uma outra tragédia, que é a de não ser escutado. Sempre que alguém com um diagnóstico de doença mental comete um crime, a patologia é usada para anular as interrogações e esvaziar o discurso de sentido. A pessoa não é mais uma pessoa, com história e circunstâncias, na qual a doença é uma circunstância e uma parte da história, jamais o todo. A pessoa deixa de ser uma pessoa para ser uma doença. Se há um histórico, é o de sua ficha médica, marcada por internações e medicamentos – ou a falta de um e de outro. Esvaziada de sua humanidade, o que diz é automaticamente descartado como sem substância. A doença mental, ao substituir a pessoa, explica também o crime. E, se não há sujeito, não é preciso nem pensar sobre os significados do crime, nem sobre o que diz aquele que o cometeu.
 
Mas o que essa escolha – a de reduzir uma pessoa a uma patologia e a de anular os sentidos do seu discurso – diz da sociedade na qual foi forjado esse modo de olhar? Se Alessandro de Souza Xavier, 33 anos, o homem que na terça-feira (25/2) empurrou Maria da Conceição Oliveira, 28, no metrô, for escutado, há algo de particularmente perturbador na justificativa que confere ao seu ato. Alessandro diz: “Fizeram um mal pra mim, e eu descontei. Fiz porque estava nervoso com o pessoal do mundo.”
 
"O louco não expressa apenas a sua loucura. Ele também denuncia a insanidade da sociedade em que vive."
O que há de particularmente perturbador nessa fala é que, quando escutada, ela desnuda o atual momento do Brasil. Vale a pena lembrar que o louco é também aquele que diz explicitamente do seu mundo. Sem mediações, ao dizê-lo ele pode sacrificar a vida de outros, assim como a sua. Vale a pena lembrar ainda que o louco não expressa apenas a sua loucura. Ele denuncia também a insanidade da sociedade em que vive.
 
Ao interrogar sobre os sentidos do que Alessandro diz, quando explica por que empurrou Maria, é necessário olhar para os outros crimes que viraram notícia nos últimos dias. Nenhum deles, até agora, relacionado a doenças mentais. Torcedores do São Paulo bateram com barras de ferro em um torcedor do Santos que esperava o ônibus. Bateram nele até matá-lo. Ao deparar-se com blocos de Carnaval interrompendo o trânsito, na Vila Madalena, bairro de classe média de São Paulo, um homem acelerou o carro e feriu dez pessoas. Quem estava perto o arrancou do veículo e passou a agredi-lo. Quando ele conseguiu fugir, destruíram o carro. Um casal de lésbicas foi espancado ao sair de um bloco de Carnaval, no Rio. Uma delas teve a roupa arrancada. Apenas uma pessoa na multidão ao redor tentou ajudá-las. Em Franca, no interior de São Paulo, um adolescente correu atrás de um suspeito de assalto e lhe aplicou um golpe chamado de “mata-leão” (estrangulamento). O suspeito, de 22 anos, teve um infarto após ser imobilizado e morreu no hospital. Um morador de rua foi linchado em Sorocaba (SP) por ter pegado um xampu de um supermercado. Teve afundamento do crânio. No Rio, mais um adolescente foi amarrado e agredido depois de furtar um celular. Linchamentos eclodiram em todo o país depois do caso do garoto acorrentado com uma trava de bicicleta no Flamengo. Nas semanas anteriores, dois manifestantes acenderam um rojão num protesto no Rio, matando um cinegrafista. Na Baixada Fluminense, um homem executou um suspeito de assalto com três tiros, em plena rua, durante o dia, assistido por vários. Mais de 40 ônibus foram incendiados em São Paulo em 2014.
 
"A lucidez do louco é a de não vestir como razão a nudez do seu ódio – ou do seu medo."
O discurso do louco é encarado como uma afirmação (e confirmação) da sua loucura, o que é outra forma de não escutá-lo. No caso de Alessandro, uma das provas da loucura do louco teria sido ele dizer que jogou Maria nos trilhos do metrô por raiva e também por vingança. Explícito assim. Outra prova da loucura do louco revelou-se ao afirmar que não a conhecia, que a escolheu de forma aleatória. “Desconexo” – foi o adjetivo usado para definir o discurso de Alessandro. Sua vítima não era torcedora do Santos, não era lésbica, não tinha furtado um celular ou um xampu, as desrazões interpretadas como razões. Por que, então? O louco confessou: Maria não era Maria, já que não a conhecia nem sabia o seu nome, mas o “pessoal do mundo”. A lucidez do louco talvez seja a de não vestir como razão a nudez do seu ódio – ou a nudez do seu medo. Por isso também é louco.
 
Diante da violência que irrompe no Brasil em todos os espaços, talvez seja a hora de escutar o louco.
Talvez o fato de ele atacar no metrô não seja um detalhe descartável, uma coincidência destituída de significado. No mesmo dia em que Alessandro foi preso, morreu no hospital Nivanilde de Silva Souza, aos 38 anos. No mesmo dia em que, na Estação da Sé, Alessandro empurrou Maria, na Estação da Luz um trem atingiu a cabeça de Nivanilde. Ela tinha dito a um estagiário da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) que estava grávida, o que lhe assegurava o direito a entrar no vagão especial. O estagiário disse a ela que teria de apresentar um documento comprovando a gestação. Os dois teriam se empurrado, seguranças deram voz de prisão à Nivanilde. Na confusão, ela teria caído na plataforma. O trem bateu na sua cabeça.
 
No início de fevereiro, a linha-3 vermelha do metrô parou por cinco horas depois da falha em uma porta na estação da Sé, a mesma em que Alessandro empurrou Maria. No verão paulistano mais quente desde 1943, o ar-condicionado foi desligado. Pessoas vagavam pelos túneis, algumas desmaiaram, grávidas e velhos esperaram dentro de vagões abafados por horas. Pelo menos 19 dos 40 trens que circulavam na linha foram depredados.
 
O outro, qualquer outro, tornou-se inimigo e competidor por um lugar no trem que nos engole e nos cospe em seu vaivém automático
Os protestos de junho de 2013 começaram por causa das tarifas do transporte público, em São Paulo os 20 centavos de aumento da passagem. Naquele momento, milhares romperam o imobilismo, no concreto e no simbólico, e passaram a andar por cidades em que não se andava, vidas consumidas em ônibus e metrôs superlotados. O aumento de 20 centavos foi cancelado, mas o péssimo transporte público continuou mastigando o tempo, desumanizando gente. Basta parar para esperar o trem nos horários de pico para ser empurrado, xingado, odiado. O outro, qualquer outro, tornou-se nosso inimigo e nosso competidor por um lugar no trem que nos engole e nos cospe em seu vaivém automático. Somos passageiros que não passam, e a tensão dessa impossibilidade cotidiana pode ser apalpada. A violência é gestada como uma promessa para o segundo seguinte.
 
Então o louco vai lá e empurra a mulher sobre os trilhos. Rompe o imobilismo e empurra aquela que espera. Porque é louco. Caso isolado, nenhuma conexão com nada, desconexo é o seu discurso, fora da história é o seu gesto, a insanidade é só dele. Basta eliminá-lo, tirá-lo de circulação, para que a sociedade brasileira volte a ser sã. E o metrô de São Paulo um espaço de convivência agradável e pacífico, marcado pela cordialidade.
 
"Talvez estejamos todos não loucos, mas no lugar do louco. Já não nos subjetivamos, tudo é literal."
 
Nos mínimos atos do cotidiano nos falta a palavra que pode mediar a ação, interromper o gesto de violência antes que se complete. Mas talvez estejamos no lugar do louco especialmente porque nem escutamos, nem somos escutados. E quem não é escutado vai perdendo a capacidade de dizer. Só resta então a violência.
 
"Reprimir os protestos é uma forma brutal de não escutar o que dizem aqueles que ainda se preocupam em dizer"
Os protestos iniciados em junho pelos 20 centavos e agora centrados na Copa do Mundo são um dizer. Responder a eles com repressão – seja da polícia no espaço público, seja em projetos de lei que transformam manifestantes em terroristas, seja anunciando que o Exército vai para as ruas em tempos de democracia – é uma forma brutal de não escutar aqueles que ainda se preocupam em dizer. É talvez a maior violência de todas.
 
É preciso ser muito surdo para acreditar que prender todos, “deter para averiguação”, criminalizar manifestantes é suficiente para voltarmos a ser o Brasil cordial e contente que nunca existiu, 200 milhões em ação torcendo pela seleção canarinha. Que o dizer de quem deseja um Brasil diferente seja hoje expressado no campo simbólico do futebol é mais uma razão para escutá-lo, ao mostrar que estamos diante de novas construções do imaginário.
 
Escutem o louco. Para não colocar aqueles que protestam no lugar do louco, no lugar daquele que não é escutado porque não teria nada a dizer. E depois surpreenderem-se com a resposta violenta, convencendo-se de que não têm nada a ver com isso.
 
 
Por: Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista.
Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes, o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua e A Menina Quebrada e do romance Uma Duas.