segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

A psicologia de nós mesmos


O sofrimento psíquico determina nossas possibilidades de crescimento. Desde o nascimento, estamos diante da tarefa de construir defesas frente a dor, das mais fortes às mais leves. A saúde emocional depende da maturidade do Eu, da flexibilidade que temos - ou não - para lidar com a dor, com as condições favoráveis ou desfavoráveis do ambiente. Quanto mais precocemente o ambiente nos atinge, menos condições temos de poder sentir e lidar com a dor psíquica. Há os que não tem condições de fazer luto, não tem condições de lidar com amor e ódio, de preocupar-se consigo mesmo e com o outro. Para estes, sonhar, esperar e criar um futuro também não se torna possível. Apenas constroem falsas ilusões, deliram sobre si mesmo, sobre o mundo. A contraparte do sofrimento sentido é a possibilidade de sonhar. Nem todos são capazes de fazer das perdas o adubo para o sentido da vida, para a construção de um devir.

Nos momentos de crise, faz-se ainda mais necessário poder voltar-se para dentro e refletir, para si mesmo, os nossos sentimentos, observá-los, escutá-los, senti-los em seus mais profundos efeitos. A coragem de poder estar a sós com os próprios sentimentos nos dá condições de não retaliar, nem a nós nem ao outro. Permite dar voz ao que, na turbulência da crise, evacuamos sobre o outro ou sobre nós, numa tentativa desesperada de nos livrarmos do desprazer vivenciado.

Uma certa condição de poder suportar o desprazer é necessária para poder viver a solidão reflexiva, que nos permite estar a sós, mas não necessariamente isolados do mundo. No mais íntimo de cada um, reside uma área que apenas nós temos acesso, uma área que precisa ser preservada como tal, uma solidão essencial (Winnicott). Estar a sós consigo mesmo exige, ainda, a arte de saber quando é que tal solidão pode se transformar em amargura, em ressentimento. Aí, já não estamos mais a sós com nossos próprios pensamentos. Estamos insulados em nós mesmos. A solidão, a reflexão, quando benéficas, nos abrem para o mundo

Nenhum gesto humano está separado das fantasias que correspondem a cada mínimo gesto, seja ele impedido, recusado ou consentido. A tarefa constante do humano é poder separar e ligar mundo interno e mundo externo. O que trazemos em nosso mundo interno pode ser mais ameaçador do que a própria realidade. É então que recusamos manter contato com uma parte de nós que via de regra é mais rica - e potencialmente mais criadora - do que a própria realidade. O que consideramos nosso avesso porta em si nossa natureza, nossas potencialidades, nossa capacidade de criar a nós mesmos e ao outro. Somos os primeiros a virar as costas para nós mesmos.

A primeira necessidade humana é o estabelecimento do sentido de confiança (Winnicott). Dela parte a possibilidade de construir, vivenciar e diferenciar um mundo interno de um
mundo externo; a possibilidade de haver sonho, esperança, ao lado da realidade - e não em oposição à realidade. Quando o ambiente não proporciona as condições para o poder confiar, não se estabelece também a confiança em si: acentua-se a necessidade de termos que definir, constantemente, o que pertence à realidade interna e o que é da realidade externa.

O mundo se torna agressivo, nós nos tornamos agressivos. A experiencia de poder confiar é pré-requisito para a esperança. Na base da confiança não está um ambiente que nunca falha, mas um ambiente que é capaz de "estar ali", disponível para a criança e capaz de sustentar a continuidade apesar dos movimentos da vida. Quando a confiança não se estabelece na infância, buscamos vida a fora a família que precisamos ter e, constantemente, estamos também à espreita da família que não tivemos, multiplicada em todos os demais relacionamentos. Não confiar é não conseguir sonhar a si mesmo nem ao mundo.

Para o humano, um desejo jamais emerge na consciência sem a sua contrapartida: medos, fantasias de onipotência nos levam a amputar o desejo. Com isso, boa parte da energia disponível ao Eu é usada por esse mesmo eu para manter à distancia de si o desejo que insiste por ser reconhecido. O eu, então, se enfraquece, se empobrece. Quando Freud articulou as instâncias Eu, Isso e Supereu, mostrou que não há uma separação radical entre elas.

A cada desejo que emerge, na consciência ou não, emerge também sua crítica, sua possibilidade de não execução. O que nos socorre, entretanto, é o fato de que a força do desejo é sempre imperiosa, levando-os a criar sintomas, sentir coisas que não são reconhecidas pelo Eu como familiares. O que é estranho para o Eu é também veículo do desejo em questão, ainda que recusado. O eu se apresenta, então, em falta, em falhas, despotencializado, empobrecido: a força do desejo não realizado é ainda força do desejo. No caminho de cada um, há sempre um resgate de si à espera de se realizar. O desejo de realização de si é tanto o que move a vida quanto o que nos aponta que precisamos seguir.

Na busca pela igualdade, pela completude, eu e outro deixam de se perceber como tais. Perdem com isso, a brincadeira, a conquista da harmonia e do amor. Buscar a perfeição, a igualdade de pensamentos e sentimentos é o contrário do alcance da harmonia. Não se conquista a harmonia, não se vive o amor se estamos presos à ideia de completude, igualdade. Passamos uma vida tentando eliminar as diferenças. Não nos damos conta de que são elas que nos movem.


(Evelin Pestana, Casa Aberta - Página, Psicanálise, Artes, Educação).

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