terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Luta sem vitória


Meus passos são rápidos
Mas não saio do lugar
o suor secou
trabalho não acabou

Tudo que acontece
eu vejo na hora
tudo que acontece
esqueço amanhã 

Tá tudo errado
Não quero ser castigado
onde está deus?
que ainda não apareceu...

Luta sem vitória
roubaram minha história
Luta sem vitória
eu quero explodir

A igreja junto ao estado
Todo rebanho já manipulado
Eu acredito apenas no que vejo
Porque o sistema matou o meu desejo
Mas não matou minha sede de verdade
O meu ódio espalho pela cidade
Na minha mente explode informação
Eu não preciso mais dessa ilusão


Por: Acefalia - Estupro Da Essência Humana

domingo, 21 de dezembro de 2014

A doença de ser normal


A humanidade pode estar sendo acometida por uma epidemia global: a normose, uma obsessão doentia por ser normal.


 Já foi normal duas pessoas se digladiarem até a morte para entreter a multidão. Também já foi normal queimar mulheres na fogueira por bruxaria e fazer pessoas trabalharem sem remuneração com direito a castigos físicos só pela cor da pele. Era normal também humanos se alimentarem de sua própria espécie e casarem sem amor. Já foi normal passar 40 horas da semana fazendo algo que se detesta, mentir para ganhar dinheiro e devastar florestas inteiras em busca de um suposto desenvolvimento. Peraí, este último ainda é normal. Afinal, será que ser normal - e achar normais coisas que não deveriam ser - pode ser uma doença? 

Segundo alguns psicólogos, sim. A doença de ser normal chama-se, segundo eles, normose: um conjunto de hábitos considerados normais pelo consenso social que, na realidade, são patogênicos em graus distintos e nos levam à infelicidade, à doença e à perda de sentido na vida. 

O conceito foi cunhado quase que simultaneamente pelo psicólogo e antropólogo brasileiro Roberto Crema e pelo filósofo, psicólogo e teólogo francês Jean-Ives Leloup, na década de 1980. Eles vinham trabalhando o tema separadamente até que um terceiro psicólogo, o francês Pierre Weil, se deu conta da coincidência. Perplexo, Weil conectou os dois, e os três juntos organizaram um simpósio sobre o tema em Brasília, uma década atrás. Do encontro, nasceu uma parceria e o livro Normose: A patologia da normalidade. 

No fim dos anos 70, Crema estava encucado com o fato de muitos autores apontarem uma "patologia da pequenez": o medo de se deixar ser em sua totalidade. Ele deparou-se com muitos pensadores, entre eles o alemão Erich Fromm (1900-1980), que falava do medo da liberdade, e o suíço Carl Jung (1875-1961), que afirmava que só os medíocres aspiram à normalidade. Crema misturou ao caldo a célebre declaração do escritor britânico G.K. Chesterton (1874-1936), que disse que "louco é quem perdeu tudo, exceto a razão", e acrescentou os anos de observação e prática em sua clínica pedagógica. 

Assim nasceu o conceito de normose, que, segundo ele, "ocorre quando o contexto social que nos envolve caracteriza-se por um desequilíbrio crônico e predominante". A normose torna-se epidêmica em períodos históricos de grandes transições culturais - quando o que era normal subitamente passa a parecer absurdo, ou até desumano. Foi o que aconteceu no final do período romano, em relação à perseguição de cristãos, ou no início da Idade Moderna, com o fim da legitimidade da Santa Inquisição, ou no século 19, com a perda de sustentação moral da escravidão. E, segundo Crema, Leloup e Weil, é o que está acontecendo de novo, com a crise dos nossos sistemas de produção, trabalho e valores.

"O novo modelo é ainda embrionário, e os visionários dessa possibilidade de sociedade não-normótica ainda são minoria", diz Crema. Enquanto a maioria de nós se adapta a um ambiente social doente, quem resiste à normose acaba considerado desajustado, por não obedecer ao estado "normal" das coisas. Como aquele cara que, mesmo ganhando o suficiente para fornecer educação, moradia e alimentação para si e seus filhos, é considerado vagabundo e louco por, em plena quarta-feira ensolarada, liberar as crianças da aula e levá-las à praia. Mas como? Em dia de semana? As crianças vão faltar aula? Pois é. De repente, ele acha que um dia na natureza vai fazer mais bem a seus filhos do que horas sentados em sala de aula. Será que ele não é saudável, e doentes estão os outros? 


Desnormotização 

Para a filósofa Dulce Magalhães, que escreve sobre mudanças de paradigmas, o normótico acredita que geração de renda e falta de tempo para si ou para a família são indissociáveis. "As pessoas consideram que trabalhar muitas horas, colocar em risco sua saúde e suas relações é normal", diz ela. "Mas isso tem um custo pessoal e social alto demais, que acabam levando a problemas de saúde pública e violência, por exemplo." 

Dulce acha que a cura para a normose está em mudarmos de modo mental, abandonando o modelo da escassez, que hoje rege o mundo, e abraçando o da abundância. Ela explica: "Desde a infância, aprendemos que o que vem fácil vai fácil e que, se a vida não for difícil, não é digna. Precisamos mudar isso e entender que esforço não é tarefa." Quantos de nós chegamos em casa reclamando para mostrarmos (a nós mesmos e aos outros) que trabalhamos muito e tivemos um dia duro, como se isso trouxesse algum tipo de mérito? 

Segundo Crema, cada um de nós tem talentos diversos, mas "o normótico padece de falta de empenho em fazer florescer seus dons e enterra seus talentos com medo da própria grandeza, fugindo da sua missão individual e intransferível". "Quando temos necessidade de, a todo custo, ser como os outros, não escutamos nossa própria vocação", acredita. 

O carioca Eduardo Marinho, hoje com 50 anos, percebeu cedo que não queria ser como os outros. Filho de militar, abriu mão de sua condição financeira e de sua faculdade ao se dar conta, aos 18 anos, que não queria olhar para sua vida quando velho e pensar que não tinha feito nada relevante. "Não queria ser bem-sucedido e me sentir fracassado". Eduardo saiu pelo País pedindo abrigo e comida em troca de favores e buscando algo que o preenchesse. Depois de passar por poucas e não tão boas pelo Brasil, deu voz a sua vocação. Hoje é artista plástico. 

Ele acredita que a desnormotização se inicia dentro de cada um: "Que tal olhar para dentro de si mesmo? É aí que começa a revolução", sugere. Claro que, para isso, não é mandatório dormir nas ruas. Fazer o trajeto que Eduardo escolheu para si pode ser perigoso e não há nenhuma garantia de sucesso.


Bug cerebral 

A cura da normose é trabalho individual, mas alguns esforços sociais podem ajudar. Para começar, seria um adianto se tivéssemos um novo modelo educacional. A escola poderia ser o lugar onde as crianças descobrem suas verdadeiras vocações - em vez de tentar padronizar os alunos e convencê-los a serem normais. 

Mundo afora, estão surgindo escolas com uma nova lógica, como a Escola da Ponte, em Portugal. A instituição não segue um sistema baseado em séries, e os professores não são responsáveis por uma disciplina ou por turmas específicas. As crianças e os adolescentes que lá estudam definem quais são suas áreas de interesse e desenvolvem seus próprios projetos de pesquisa, tanto em grupo como individuais. 

Algo similar parece estar acontecendo no mundo empresarial, onde mais e mais empreendimentos estão dando voz à liberdade individual. O caso clássico, sempre citado, é o do Google, cuja sede, em Mountain View, na Califórnia, conta com salas de jogos, videogames, espaços ao ar livre e tempo reservado para que cada funcionário desenvolva seus próprios projetos para a empresa, com total autonomia. 

Claro que não há vagas para todos nós no Google nem para todos os nossos filhos na Escola da Ponte. A cura da normose não vai ser resultado de uma ou outra iniciativa isolada - ela só vai ser possível quando houver no mundo gente suficiente disposta a questionar tudo o que achamos normal. E talvez isso demore anos para acontecer. 

A explicação para isso pode estar num bug que todos carregamos no cérebro, que tem uma tendência de recusar sempre novos jeitos de olhar o mundo. É o que explica o psicólogo israelense Daniel Kahneman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 2002, em seu livro Rápido e Devagar: Duas formas de pensar. Segundo ele, nosso cérebro confunde o que é familiar com o que é correto: ao ver ou sentir algo que desperta alguma memória, o cérebro define aquele "familiar" como "correto", da mesma maneira que o novo é decodificado como passível de desconfiança. 

Esse sistema foi muito útil para nossos antepassados homens das cavernas, que não podiam mesmo sair comendo qualquer frutinha nova que aparecesse à sua frente. Mas, nos dias de hoje, que exigem novas ideias para lidar com um mundo em mudança constante, esse mecanismo cerebral virou um entrave à inovação. Segundo essa tese, a normose não é uma doença: é uma característica humana, moldada pela evolução. Ou seja, talvez ser normótico seja normal. 


Você tem normose? 

Normose é um conjunto de hábitos considerados normais pelo consenso social que, na realidade, são patogênicos e nos levam à infelicidade, à doença e à perda de sentido na vida. "Que tal olhar para dentro de si mesmo? É aí que começa a revolução". Importante notar que, para olhar para dentro e descobrir sua vocação, não é mandatório dormir pelas ruas do país. 



Por Carolina Bergier - Super Interessante 

Para saber mais: Normose: A patologia da normalidade Jean-Yves Leloup, Pierre Weil e Roberto Crema, Verus, 2003

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

A doença da "normalidade" na universidade


Somos todos normóticos em um sistema acadêmico de formação de pesquisadores e de produção de conhecimentos que está doente, e nossa Normose acadêmica tem feito naufragar o pensamento criativo e a iniciativa para o novo em nossas universidades

Doença sempre foi algo associado à anormalidade, à disfunção, a tudo aquilo que foge ao funcionamento regular. Na área médica, a doença é identificada por sintomas específicos que afetam o ser vivo, alterando o seu estado normal de saúde. A saúde, por sua vez, identifica-se como sendo o estado de normalidade de funcionamento do organismo.
Numa analogia com os organismos biológicos, o sociólogo Émile Durkheim também sugeriu como identificar saúde e doença em termos dos fatos sociais: saúde se reconhece pela perfeita adaptação do organismo ao seu meio, ao passo que doença é tudo o que perturba essa adaptação.
Então, ser saudável é ser normal, é ser adaptado, certo? Não necessariamente: apesar de Durkheim, há quem considere que do ponto de vista social, ser normal demais pode também ser patológico, ou pode levar a patologias letais.
Os pensadores alternativos Pierre Weil, Jean-Ives Leloup e Roberto Crema chamaram isto de Normose, a doença da normalidade, algo bem comum no meio acadêmico de hoje. Para Weil, a Normose pode ser definida como um conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir, que são aprovados por consenso ou por maioria em uma determinada sociedade e que provocam sofrimento, doença e morte. Crema afirma que uma pessoa normótica é aquela que se adapta a um contexto e a um sistema doente, e age como a maioria. E para Leloup, a Normose é um sofrimento, a busca da conformidade que impede o encaminhamento do desejo no interior de cada um, interrompendo o fluxo evolutivo e gerando estagnação.
Estes conceitos, embora fundados sobre um propósito de análise pessoal e existencial, são muito pertinentes ao que se vive hoje na academia. Aqui, pela Normose não é apenas o indivíduo que adoece, que estagna, que deixa de realizar o seu potencial criador, mas o próprio conhecimento. E não apenas no Brasil, também em outras partes do mundo.
Peter Higgs, Prêmio Nobel de Física de 2013 disse recentemente que não teria lugar no meio acadêmico de hoje, que não seria considerado suficientemente produtivo, e que, por isso, provavelmente não teria descoberto o Bosão de Higgs (a “partícula de Deus), descrito por ele em 1964 mas somente comprovado em 2012, quase 50 anos depois, com a entrada em funcionamento de uma das maiores máquinas já construídas pelo homem, o acelerador de partículas Large Hadron Collider. Higgs contou ao The Guardian que era considerado uma “vergonha” para o seu Departamento pela baixa produtividade de artigos que apresentava, e que só não foi demitido pela possibilidade sempre iminente de um dia ganhar um Nobel, caso sua teoria fosse comprovada. Ele reconheceu que, nos dias de hoje, de obsessão por publicações no ritmo do “publique ou pereça”, não teria tempo nem espaço para desenvolver a sua teoria. À sua época, porém, não só o ambiente acadêmico era outro como ele próprio era um desajustado, um anormal, uma espécie de dissidente que trabalhava sozinho em uma área fora de moda, a física teórica expeculativa. Então, sua teoria é também fruto desta saudável “anormalidade”.
A mim, embora não surpreendam, as declarações de Higgs soam estarrecedoras: ou seja, com os sistemas meritocráticos de avaliação de hoje, que privilegiam a produção de artigos e não de conhecimentos ou de pensamentos inovadores, uma das maiores descobertas da humanidade nas últimas décadas, que rendeu a Higgs o Nobel em 2013, provavelmente não teria ocorrido, como certamente muitos outros avanços científicos e intelectuais estão deixando de ocorrer em função dos sistemas atuais de avaliação da “produtividade em pesquisa”. É a Normose acadêmica fazendo a sua maior vítima: o próprio conhecimento.
Aliás, nunca se usou tanto a autoridade do Nobel para apontar os desvios doentios do nosso sistema acadêmico e científico como em 2013. Randy Schekman, um dos ganhadores do Nobel de Medicina deste ano, em recente artigo no El País, acusou as revistas Nature, Science e Cell, três das maiores em sua área, de prestarem um verdadeiro desserviço à ciência, ao usarem práticas especulativas para garantirem seus mercados editoriais. Schekman menciona, por exemplo, a artificial redução na quantidade de artigos aceitos, a adoção de critérios sensacionalistas na seleção dos mesmos e um absoluto descompromisso com a qualificação do debate científico. E afirmou que a pressão para os cientistas publicarem em revistas “de luxo” como estas (de alto impacto) encoraja-os a perseguirem campos científicos da moda em vez de optarem por trabalhos mais relevantes. Isto explica a afirmação de Higgs sobre ser improvável a descoberta que lhe deu o Nobel no mundo acadêmico de hoje.
O próprio Schekman publicou muito nestas revistas, inclusive as pesquisas que o levaram ao Nobel: diferentemente de Higgs, que era um dissidente, Schekman também já sofreu de Normose. Porém, agora laureado, decidiu pela própria cura e prometeu evitar estas revistas daqui para adiante, sugerindo não só que todos façam o mesmo, como também que evitem avaliar o mérito acadêmico dos outros pela produção de artigos. Foi preciso um Nobel para que se libertasse da doença.
A atual Normose acadêmica se deve à meritocracia produtivista implantada nas universidades, cujos instrumentos, no Brasil, para garantir a disciplina e esta doentia normalidade são os sistemas de avaliação de pesquisadores e programas de pós-graduação, capitaneados principalmente pela CAPES e CNPq. Estes sistemas têm transformado, nas últimas décadas, docentes e alunos em burocráticos produtores de artigos, afastando-os dos reais problemas da ciência e da sociedade, bem como da busca por conhecimentos e pensamentos realmente novos. A exigência de produtividade é um estímulo ao status quo, obstruindo a criatividade, a iniciativa, o senso crítico e a inovação, pois inovar, criar, empreender, fugir ao normal pode ser perigoso, pode ser incerto, pode ser arriscado quando se tem metas produtivas a cumprir; portanto, não é desejável: o mais seguro é fazer “mais do mesmo”, que é ao que a Normose acadêmica condenou as universidades e seus integrantes ao redor do mundo.
Eu escrevi em um artigo de 2013 que a meritocracia leva a uma ilusão de eficiência e progresso que não podem se realizar, porque as meritocracias modernas são burocracias. Como bem ensinou Max Weber, a burocracia é uma força modeladora inescapável quando se racionaliza e se regulamenta algum campo de atividade, como acontece no sistema científico atual. Para supostamente discriminar por mérito pessoas e organizações acadêmicas, montou-se um tal sistema de regras, critérios avaliativos, hierarquias de valor, indicadores, etc., que a burocratização das ações acadêmicas tornou-se inevitável. Agora é este sistema que orienta as ações dos acadêmicos, afastando-os de seus próprios valores, desejos e convicções, para agirem em função da conveniência em relação aos processos avaliativos, visando controlar os benefícios ou penalidades que eles impõem. Pessoas sob regimes de avaliação meritocráticos se tornam burocratas comportamentais; e burocratas, como se sabe, pela primazia da conformidade organizacional a que se submetem, tornam-se inexoravelmente impessoalistas, formalistas, ritualistas e avessos a riscos e a mudanças. Tornam-se normóticos, preferindo, no caso da academia, uma produção sem significado, sem relevância, sem substância inovadora porém segura, a aventurarem-se incertamente em busca do novo.
Agora, depois de já ter escrito isto naquele artigo, descubro que o Nobel de Medicina de 2002, o sul-africano Sydney Brenner, em entrevista de fevereiro deste ano à King’s Reviw, afirmou exatamente o mesmo. Dentre outras coisas, disse ele que as novas ideias na ciência são obstruídas por burocratas do financiamento de pesquisas e por professores que impedem seus alunos de pós-graduação de seguirem suas próprias propostas de investigação. É ao menos alentador perceber que esta realidade insólita não é apenas uma versão tupiniquim da busca tardia e equivocada por um lugar o sol no campo acadêmico atual, mas uma deformação que assola também os “grandes” da arena científica mundial. E também constatar que os laureados com a distinção do Nobel tem se percebido disto e denunciado ao mundo.
De certa forma, todos na academia sabem que estes sistemas de avaliação acadêmicos têm levado a um produtivismo estéril, mas isto não tem sido suficiente para mudar nem as condutas pessoais, nem as diretrizes do sistema, porque a Normose é uma doença coletiva, não individual. Ela advém da necessidade de legitimação do indivíduo frente ao sistema de regras, normas, valores e significados que se impõe a ele. Por isto é que o pesquisador australiano Stewart Clegg afirmou, certa vez, que “pesquisadores que buscam legitimação profissional podem com muita facilidade ser pressionados a aprender mais e mais sobre problemas cada vez mais desinteressantes e irrelevantes, ou a investigar mais e mais soluções que não funcionam”.
Mas agora me advém uma questão curiosa: por que tantos Nobéis tem denunciado este sistema? Creio que porque do alto da distinção recebida, eles já não tem mais nenhum compromisso com a meritocracia acadêmica, e podem falar do dano que ela causa às ideias realmente inovadoras que, inclusive, podem levar à láurea. Mas também porque o Nobel foge à lógica da meritocracia, ele não é um mecanismo meritocrático, portanto, não é burocrático. Ele é até mesmo político, antes de ser meritocrático e burocrático! É um reconhecimento de “mérito” sem ser uma “cracia”. Ou seja, não há, através dele, um sistema de governo das atividades científicas, e por isso ele não leva a uma racionalidade formal, pois ninguém em consciência normal pautaria sua atividade acadêmica quotidiana pela improvável meta de, talvez já na velhice, ganhar o Nobel; e mesmo que tivesse este excêntrico propósito como pauta, teria que fugir da meritocracia que governa os sistemas científicos atuais para chegar a um lugar reconhecidamente distinto, pois ser normal não leva ao Nobel.
Mas este não é o mundo da vida dos seres acadêmicos de hoje, aqui vivemos em uma meritocracia burocrática, e num contexto assim, pouco adiantam as advertências da editora-chefe da revista Science, Marcia McNutt, publicados no Estadão, de que a ciência brasileira precisa ser mais corajosa e mais ousada se quiser crescer em relevância no cenário internacional. Segundo ela, para criar essa coragem é preciso aprender a correr riscos, e aceitar a possibilidade de fracasso como um elemento intrínseco do processo científico. Mas quando as pessoas são penalizadas pelo fracasso, ou são ensinadas que fracassar não é um resultado aceitável, elas deixam de arriscar; e quem não arrisca não produz grandes descobertas, produz apenas ciência incremental, de baixo impacto, que é o perfil geral da ciência brasileira atualmente, segundo ela. É a Normose acadêmica “a brasileira” vista de fora.
Somos todos normóticos em um sistema acadêmico de formação de pesquisadores e de produção de conhecimentos que está doente, e nossa Normose acadêmica tem feito naufragar o pensamento criativo e a iniciativa para o novo em nossas universidades. Sem eles, porém, não há futuro significativo para a vida intelectual dentro delas, nem na ciência nem nas artes.
Texto de Renato Santos de Souza, publicado no E-Book: NASCIMENTO, L.F.M. (Org.) Lia, mas não escrevia (livro eletrônico): contos, crônicas e poesias. Porto Alegre: LFM do Nascimento, 2014.